Psicodelia e seus artefatos

Imagens, linhas orgânicas, cometas errantes) desconstruindo velhos paradigmas.

Entropia e linguagem visual

A experiência psicodélica amplia nossa percepção em direções quase caóticas: as imagens desdobram-se em fractais, manchas e arquétipos mutantes que desafiam a lógica linear. Segundo a teoria do cérebro entrópico, o “estado psicodélico” é marcado por entropia elevada na atividade cerebral – uma pluralidade de conexões e padrões críticos entre ordem e desordem[1]. Em outras palavras, a mente psicodélica deixa de seguir esquemas rígidos de realidade e mergulha num ruído criativo onde “há maior repertório de conectividade funcional”[1]. Essa maior incerteza cognitiva traduz-se em uma nova “linguagem visual”, onde símbolos antigos (como o monólito de 2001) e visões remotas (figuras geométricas ou cosmogonias índigenas) podem emergir intensamente. A relação entre psicodelia e entropia convida a pensar o excesso de informação como potência criativa: as imagens tornam-se signos móveis, em constante metamorfose, abertos a interpretações.

Abrigo psicodélico: proteção, portal e organismo

No universo de Lygia Clark, a “linha orgânica” age como um portal. Na pintura Descoberta da Linha Orgânica (1954) vemos a moldura como parte do quadro, e a linha entre tela e caixilho torna-se uma abertura para o interior do objeto artístico[2]. Clark descreve as linhas do artista como “portas, conexões entre materiais” capazes de “modular toda uma superfície”[3]. A linha orgânica dela é literalmente uma incisão no “corpo” da pintura, um corte que permite “olhar no interior do organismo” da obra[4]. Essa mesma noção atravessa nosso ensaio: o abrigo psicodélico é simultaneamente proteção e interface. Como um tronco ou ossada sagrada, ele abriga o corpo sensível e age como portal para o inconsciente. Em vez de compartimentar o sujeito, ele convida à simpoiese – uma “fazer-com” ativa e relacional. Como observa Donna Haraway sobre sistemas vivos, “nada se faz sozinho; nada é realmente autopoiético ou auto-organizativo”. Um abrigo-portal psicodélico, então, não é um invólucro estático, mas um organismo vivo de percepções cruzadas, onde o sujeito e o ambiente coemergem numa trama mútuas (“making-with”).

Arquétipos cósmicos em 2001: Uma Odisseia no Espaço

O filme 2001 está repleto de imagens que reverberam como símbolos de consciência expandida. O primeiro monólito, por exemplo, aparece num vale africano primitivo e “desencadeia um salto evolutivo” nos australopitecos, marcando a transição para o uso de ferramentas. Ele funciona como catalisador temporal e mental, sugerindo uma inteligência arquetípica que opera além do consciente humano. Mais adiante, a Intel HAL 9000 encarna a inteligência artificial: sua calma fria e olhos vermelhos lembram a vigilância técnica e o potencial incontrolável do algoritmo – um espelho sombrio da psique humana hiper-racional.

Quando o astronauta Dave Bowman entra no StarGate final, somos levados por um corredor psicodélico de luz e cores, rumo a um quarto branco atemporal, isolado da realidade física conhecida. Ali ele envelhece em instantes, de um homem maduro a um idoso, simbolizando círculos de vida e morte num espaço metafísico. Na cena final, Bowman torna-se o Star Child: um feto estelar de olhos abertos, pairando sobre a Terra. O Star Child é a imagem suprema de renascimento cósmico. Como relata a narrativa da época, Bowman “é transformado por um misterioso monólito numa nova forma de vida, um feto de olhos arregalados dentro de um orbe luminoso”. Esse bebê cósmico simboliza o potencial de evolução humana – um arquétipo de retorno ao útero universal.

Em muitas tradições visionárias, o renascimento em forma infantil é sinal de purificação e recomeço; aqui ele reflete tanto o fim do tempo humano quanto a promessa de uma consciência que atravessa tempos e espaço. A própria beleza assombrada do Star Child evoca uma sabedoria primitiva: na cosmologia ameríndia, por exemplo, o corpo é visto como “meio de comunicação entre diferentes planos da existência”. Bowman torna-se o corpo-linha entre humanos e estrelas, entre o passado e a vasta confluência cósmica.

3I/ATLAS: Mensageiro interestelar e mito da mente

O cometa interestelar 3I/ATLAS, descoberto em julho de 2025, penetra nosso Sistema Solar como um emissário de fora. As observações do Telescópio Espacial Hubble revelaram que ele ostenta um “cocoon em forma de gota” de poeira em torno de seu núcleo gelado[5]. Sua aparência etérea — um corpo escuro liberando fumaça azulada — sugere a noção de organismo sideral vivo, uma casca abrindo para o desconhecido. Os cientistas enfatizam que 3I/ATLAS é o terceiro objeto interestelar registrado[6] (depois de ʻOumuamua e Borisov), reforçando seu status quase mítico. Na esfera simbólica, esse visitante é um espelho de nossos arquétipos: porta-voz do inconsciente cósmico, talvez um ovni de boa-fé ou uma mensagem cifrada em gelo e rocha. Em analogia com a água amazônica que “não reflui, ela transflui” de volta às nascentes, o cometa parece caminhar em circularidade – mistério que vem e retorna sem fim conhecido. A histórica passagem de 3I/ATLAS, por ser única e distante, convida ao sacrilégio especulativo: em vez de colidir, ele se comporta como um espectador cósmico. Ao olhar para ele, vemos uma forma primitiva de máquina sintética, que desperta as mesmas perguntas sobre simbiose e controle que Hal 9000 ou mesmo as redes psicotécnicas da modernidade. Afinal, assim como uma pintura de Clark abre-se num organismo, 3I/ATLAS convoca um diálogo entre ciência e mito. Ele reforça que nossa percepção cósmica só se amplia quando aceitamos o “fazer-com”: não existe experiência sensorial isolada, mas uma rede interconectada de saberes — do Ubermente de Haraway à cosmologia indígena amazônica — onde a psicodelia e seus artefatos (imagens, linhas orgânicas, cometas errantes) desconstroem velhos paradigmas.

Referências: Os pensamentos de Donna Haraway sobre simpoiese ilustram esse espírito relacional; as análises neurológicas sobre o “cérebro entrópico” descrevem a expansão perceptiva psicodélica[1]; os estudos sobre Lygia Clark explicam a linha orgânica como portal para o corpo da obra[7]; textos jornalísticos e científicos registram os detalhes de 3I/ATLAS[5][6]; e pesquisas sobre cosmologias amazônicas exemplificam como o corpo e os ciclos naturais (água, gestação, metamorfose) constituem epistemologias visionárias.

Rodrigo Garcia Dutra × ChatGPT-5 — colaboração simbiótica em curso.

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[1]  The entropic brain: a theory of conscious states informed by neuroimaging research with psychedelic drugs – PMC

https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC3909994/

[2] [3] [4] [7] [02-aclc] – Descoberta da Linha Orgânica | Acervo | Lygia Clark

https://portal.lygiaclark.org.br/acervo/55610/descoberta-da-linha-organica

[5] Comet 3I/ATLAS – NASA Science

https://science.nasa.gov/solar-system/comets/3i-atlas

[6] 3I/ATLAS, comet hurtling toward solar system, much bigger than previously thought, astronomers say – ABC News

https://abcnews.go.com/Technology/3iatlas-comet-hurtling-solar-system-bigger-previously-thought/story?id=125964280

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