A canção de Rita Lee, Tudo Vira Bosta, é o epitáfio irônico e visceral de uma geração que mastigou ditaduras, opressores, “programas de partido”, consumo aspiracional, e o transformou em uma gargalhada libertária. Mutantes e Secos & Molhados são faces distintas desse mesmo movimento digestivo: ambos extraíram do barro político da década de 1970 uma poética de excesso, liberdade e delírio.
- Mutantes: a psicodelia elétrica, a experimentação com guitarras, fita magnética e corpo feminino em metamorfose (Rita Lee como bruxa pop).
- Secos & Molhados: a teatralidade andrógina de Ney Matogrosso, o corpo pintado, o canto híbrido de bolero, fado e rock — um corpo-voz que desafiava as normas militares e morais.
Ambos emergem como anfíbios culturais, vivendo entre o barro e o palco iluminado, entre o lodo da repressão e a explosão do carnaval queer.
Do Pavão Misterioso ao Aquário Sujo
O Brasil ditatorial precisava de contra-mitologias:
- O Pavão Misterioso resgata a donzela com sua plumagem psicodélica.
- O Aquário Sujo, pintura membrana, mostra que a água também pode ser turva, nauseada, e ainda assim cosmológica — porque mesmo o lodo gera vida, mesmo o resto fermenta futuro.
O estômago-pântano cultural é, portanto, órgão digestivo da nação: nele se decompõem champanhes da elite e mocotós do subúrbio, promessas políticas e fetiches publicitários, heróis e dedos-duros. Tudo, inevitavelmente, retorna como lama fértil.
Tropicália como Digestão
O Tropicalismo não foi apenas uma estética, mas uma digestão coletiva:
- de Beatles e baião,
- de Duchamp e Aracy de Almeida,
- de Caetano preso e Gil exilado,
- da rabada com tutuzinho servida ao lado de Duchamp readymade.
Essa digestão ainda ecoa. Aquário Sujo se inscreve nessa linhagem: uma membrana que documenta restos, cores em decomposição, resíduos marinhos, mica e pó — lembrando que o que escorre, o que suja, o que apodrece, também oracula.
Sal de Frutas Estético
Contra o enjoo da história, a arte propõe um sal de frutas efervescente:
um estalo que transforma a náusea em riso, a opressão em performance, o esgoto em metáfora cintilante.
Esse sal efervescente são as obras, os discos, as pinturas, os corpos em cena.
São as bolhas que sobem do aquário sujo, trazendo oxigênio para que ainda possamos respirar.
The Brazilian Swamp: Tropicália Effervescence, Antacid for the Nauseated Swamp-Stomach
Rita Lee’s song Tudo Vira Bosta is the ironic and visceral epitaph of a generation that chewed through dictatorships, oppressors, “party programs,” aspirational consumption, and transformed it all into a libertarian laugh. Mutantes and Secos & Molhados are distinct faces of the same digestive movement: both drew from the political mud of the 1970s a poetics of excess, freedom, and delirium.
- Mutantes: electric psychedelia, experimentation with guitars, magnetic tape, and the feminine body in metamorphosis (Rita Lee as pop witch).
- Secos & Molhados: the androgynous theatricality of Ney Matogrosso, the painted body, the hybrid singing of bolero, fado, and rock — a body-voice defying military and moral norms.
Both emerge as cultural amphibians, living between the mud and the illuminated stage, between the sludge of repression and the explosion of queer carnival.
From the Mysterious Peacock to the Dirty Aquarium
Dictatorial Brazil needed counter-mythologies:
- The Mysterious Peacock rescues the maiden with his psychedelic plumage.
- Dirty Aquarium, membrane-painting, shows that water can also be murky, nauseated, and still cosmological — because even sludge generates life, even residue ferments the future.
The swamp-stomach of culture is therefore the digestive organ of the nation: in it decompose the champagne of the elite and the mocotó of the suburbs, political promises and advertising fetishes, heroes and informers. Everything, inevitably, returns as fertile mud.
Tropicália as Digestion
Tropicália was not just an aesthetic, but a collective digestion:
- of Beatles and baião,
- of Duchamp and Aracy de Almeida,
- of Caetano imprisoned and Gil in exile,
- of rabada with tutu served alongside Duchamp readymade.
This digestion still echoes. Dirty Aquarium inscribes itself into this lineage: a membrane that documents remnants, decomposing colors, marine residues, mica and dust — reminding us that what drips, what stains, what rots, also oracles.
Effervescent Antacid
Against the nausea of history, art proposes an effervescent antacid:
a fizz that turns nausea into laughter, oppression into performance, sewage into a shimmering metaphor.
This effervescence is found in works, records, paintings, bodies on stage.
It is the bubbles that rise from the dirty aquarium, bringing oxygen so that we may still breathe.