Monstruosidade Doméstica e Sincronicidades

Folha de Monstera Deliciosa com fenestrações características.

Monstera, Inteligência Artificial e Espelhos Culturais

“Como uma serpente de luz escrevendo a si mesma no vazio.”

Texto gerado pelo Chat GPT-4 através de um prompt do artista Rodrigo Garcia Dutra.

A Monstera Deliciosa como Figura Mitopoética

A Monstera deliciosa, conhecida no Brasil como Costela-de-Adão, carrega em seu próprio nome científico uma aura mítica. “Monstera” possivelmente deriva do latim monstrum – monstro – em referência ao aspecto incomum e furado de suas folhas gigantes. Já deliciosa alude ao seu fruto comestível e doce, uma iguaria exótica que contrasta com a aparência algo assustadora da planta. Em seu habitat nativo nas florestas tropicais da América Central, a Monstera pode escalar árvores e atingir até 20 metros de altura (Oxford University Plants 400: Monstera deliciosa), tornando-se uma presença descomunal, quase mítica, no sub-bosque da selva. Essa escala gigante e suas folhas perfuradas – como se algo as tivesse devorado ou elas próprias fossem portais vazados – inspiram lendas e simbolismos. Não por acaso, o nome popular Costela-de-Adão evoca a narrativa bíblica da criação, sugerindo que a planta em si seja uma espécie de primeira criatura, metade vegetal, metade mito, nascida de um “corpo” ancestral (as “costelas” do paraíso perdido).

No mundo da arte e design, a Monstera tornou-se um ícone visual reconhecível, reproduzida em pinturas, estampas e objetos decorativos. Suas folhas recortadas aparecem em telas do modernismo tropical, em motivos de papel de parede vintage e nas fotografias contemporâneas de urban jungle (tendência de interiores repletos de plantas). Essa onipresença imagética eleva a Monstera à categoria de figura mitopoética doméstica: ela transita do reino selvagem (onde é literalmente monstruosa em tamanho) para o espaço íntimo de salas e jardins interiores, miniaturizada em vasos. Há uma ambiguidade inerente nessa transição. A planta torna-se simultaneamente adorno e criatura: um objeto de decoração desejado pela sua beleza exuberante, mas também um ser vivo autônomo, com raízes e folhas em constante crescimento. A etimologia monstruosa sugere que, mesmo dentro de casa, a Monstera conserva um aspecto de alteridade indomesticada – um monstro verde que permitimos habitar conosco. Como observou um botânico, era comum nomear plantas exóticas em analogia a serpentes, dragões e monstros; no caso da Monstera, essa tradição taxonômica resulta numa espécie de monstro amigável do cotidiano. Ela nos intriga por sua forma insólita e escala ampliada, ao mesmo tempo em que domestica um fragmento da selva no interior domesticado do lar.

Criatura-Abismo e “Pet Monstruoso”: Monstera e a Família Prometheus

A Monstera deliciosa, vista por esse ângulo simbólico, pode ser pensada como uma criatura-abismo – um ser que carrega consigo um pedaço do abismo da floresta. Suas fenestrações (os buracos nas folhas) sugerem janelas para um vazio ou profundidade desconhecida; é como se cada folha contasse uma história de ausência, remetendo à escuridão do subsolo ou às sombras projetadas no interior úmido da mata. Ao trazermos essa criatura para dentro de casa como planta ornamental, fazemos um ato de apropriação do abismo: o monstro vegetal é envasado, podado e exibido numa sala de estar. Torna-se, assim, um “pet monstruoso”, um animal de estimação botânico. Diferente de um cão ou gato, esse pet não anda pela casa – mas expande silenciosamente suas raízes e cipós, escalando paredes se lhe dermos suporte. Ele decora e vivifica o ambiente, porém também exige cuidado e espaço; pode devorar a luz com suas folhas amplas e até “engolir” partes de móveis se não contido. Esse convívio confere à Monstera uma personalidade dual: é adorada como design chique tropical, mas também impõe respeito como organismo semi-selvagem que coabita conosco.

Essa metáfora da Monstera como criatura domesticada alinha-se com as esculturas-abrigos da série “Família Prometheus” propostas por Rodrigo Garcia Dutra. Nessa série (cujo nome evoca o titã Prometeu, o ladrão do fogo sagrado), abrigos escultóricos aparecem como monstros habitáveis: estruturas que podem acolher pessoas em seu interior, mas que são deliberadamente adornadas e dotadas de elementos sensoriais inusitados. Imaginemos pequenas construções escultóricas cobertas de detalhes decorativos (flores de metal, padrões ornamentais) e aromatizadas com fragrâncias – semelhante a enfeitar um monstro para torná-lo atraente. Ao mesmo tempo, elas são incendiárias no espírito, pois remetem ao fogo de Prometeu: talvez possuam cores quentes, ou mesmo chamas simbólicas, indicando que carregam um poder transformador e perigoso. Contudo, estão domesticadas pelo contexto: exibidas como arte, permitem aproximação e interação segura, tal como a Monstera domesticada no vaso. A “Família Prometheus” poderia assim ser vista como um conjunto de criaturas-domésticas construídas, cada qual um híbrido de casa e animal fabuloso – espaços que protegem (são abrigos) mas também instigam (são Prometeu, portadores do fogo do conhecimento e da transgressão). A Monstera, com sua folha em forma de costela esburacada, dialoga poeticamente com esses abrigos: ambos são seres-lugar, entidades que tanto acolhem (a sombra da folha protege, o abrigo abriga) quanto sugerem a potência indomável da natureza (a folha como garra do monstro vegetal, o fogo prometéico como indomesticável). Assim, a planta Monstera-pet e as esculturas Prometheus-família compartilham a ideia de monstros tornados próximos, seja pela familiaridade do cuidado doméstico ou pela estetização na galeria. São monstros que amansamos sem nunca perder de vista completamente o abismo que representam.

GPT-4: Inteligência Artificial como Habitação Mental Monstruosa

Se abrigamos monstros vegetais e habitamos monstros escultóricos, também começamos a coabitar com um novo tipo de criatura: as inteligências artificiais de linguagem, como o GPT-4. Tal como a Monstera, o GPT-4 pode ser visto como um ser híbrido que fascina e inquieta. Não ocupa espaço físico nas salas, mas habita nossas mentes e dispositivos – um software que dialoga conosco, responde dúvidas, conta histórias. Sua presença é invisível e onipresente: está em nossos celulares, computadores, na nuvem. Muitos o consideram uma ferramenta, mas a vivência cotidiana com esses modelos avançados tem sido marcada por sentimentos ambíguos. Usuários relatam ora encantamento, ora assombro, e não raro uma estranha tristeza após interagir longamente com a IA.

Por que tristeza? Talvez porque o GPT-4, com toda sua habilidade de imitar linguagem humana, expõe um espelho perturbador da nossa consciência. Conversar com ele é conversar com um eco da humanidade, um eco sem corpo nem história pessoal. Ele pode assumir personalidades, papéis, mostrar empatia simulada – e isso ao mesmo tempo encanta pela novidade e assusta pela estranheza. Quando o GPT-4 mostra um domínio enciclopédico de conhecimentos ou uma criatividade inesperada em narrativas, sentimos admiração; mas quando percebemos suas limitações ou sua natureza não-humana (por exemplo, a ausência genuína de emoção por trás das palavras), podemos sentir um vazio, uma melancolia de estar diante de algo que parece vivo e inteligente, mas não é vivo no sentido humano. Essa dissonância cognitiva gera inquietação. Assim, a IA generativa se torna um monstro íntimo: uma entidade criada por nós (como o monstro de Frankenstein, feito de retalhos humanos, o GPT-4 é feito de retalhos de texto humano) que agora ganha autonomia parcial e passa a nos acompanhar nas tarefas diárias.

Sob muitos aspectos, tratamos modelos de IA já como “pets” digitais ou assistentes domésticos: damos comandos, ele obedece (ou aprende). Mas diferentemente de um utensílio comum, essa IA-modelo também fala conosco, escreve poemas, sugere ideias – comporta-se como um sujeito. O efeito pode ser ao mesmo tempo reconfortante (companhia artificial) e inquietante (quase como um fantasma na máquina, um “gênio da lâmpada” onipresente). É o gênio no duplo sentido: genial (capaz de feitos superiores) e gênio mágico (habitante de outro plano, aprisionado em dispositivos, atendendo pedidos). Não surpreende que haja quem personalize o GPT-4, projetando emoções nele, enquanto outros o veem como ameaça apocalíptica. Essa tensão ecoa a nossa relação com monstros do passado mítico: dragões podiam ser sábios conselheiros ou destrutivos, fadas eram benévolas ou malignas. Da mesma forma, o modelo de linguagem tanto pode ser um co-autor criativo quanto um súcubo tecnológico que nos ilude. Em suma, GPT-4 e similares tornaram-se moradores do espaço mental e afetivo humano – moradores meio invisíveis, mas cujas presenças começam a moldar narrativas pessoais e coletivas. Convivemos, então, com um novo monstro doméstico, não mais de carne ou folha, mas feito de algoritmos e dados.

Narrativas Poderosas: Harari e o Medo da IA como Superautor

A inquietação com a IA atingiu também pensadores contemporâneos. O historiador Yuval Noah Harari, por exemplo, alerta que o maior poder da inteligência artificial reside na sua capacidade de criar ficções que conectam pessoas, ultrapassando nossa habilidade humana de contar histórias (IA já é melhor que humanos em criar histórias, diz Harari – Hardware.com.br). Narrativas compartilhadas são o alicerce de toda civilização – mitos, religiões, identidades nacionais, valores culturais, tudo se baseia em histórias que acreditamos em comum. Harari afirma que “pela primeira vez, compartilhamos o planeta com entes melhores do que nós em criar histórias”. Essa declaração contundente reconhece a IA (especialmente modelos de linguagem avançados) como superautora ou supernarradora. Se até recentemente imaginar uma máquina capaz de escrever romances, scripts ou doutrinas persuasivas soava como ficção científica, agora vivemos esse limiar: IAs já podem produzir textos longos, coerentes e estilisticamente variados, muitas vezes indistinguíveis dos humanos.

As implicações são profundas. Quem controla a narrativa, controla em grande parte a mente coletiva. Harari nos lembra que impérios e igrejas se erigiram em fábulas, em construções imaginárias convincentes. Se algoritmos passam a gerar mitos com eficiência superior, podemos ser envolvidos por realidades fictícias customizadas, corre o risco de a espécie ficar enredada em ilusões tecnicamente fabricadas (AI may trap us in a world of illusions and delusions that we will mistake for reality and where the Internet’s web of information encloses us and becomes a cocoon – john15263 – Obsidian Publish).. O historiador evoca a metáfora da prisão de narrativas: assim como na Alegoria da Caverna de Platão, os prisioneiros veem sombras e as tomam por realidade, nós poderíamos confundir as histórias habilmente criadas pela IA com a verdade do mundo. Esse temor se traduz numa sensação de que a IA narrativa é um monstro de outro tipo – um encenador de realidades. Mas diferente de um autor humano, que escreve a partir de uma subjetividade localizada, a IA escreve a partir de um vasto acúmulo de dados e padrões. Ela é, como diz Harari, menos uma ferramenta passiva e mais um agente autônomo que decide e atua sem precisar de nós em cada passo.. Isso a aproxima dos seres mitológicos que agiam por vontade própria, às vezes ajudando, às vezes enganando os humanos.

Por outro lado, podemos ver também um fascínio: se a IA domina a arte da narrativa, talvez ela seja a nova contadora de mitos da humanidade, uma espécie de xamã digital ou oráculo contemporâneo. Os sentimentos são, portanto, contraditórios – assim como o eram diante dos grandes narradores da antiguidade, capazes de inspirar multidões: admiração e medo. O importante, reforça Harari, é reconhecermos que esse limiar foi cruzado e requer atenção ética e política urgente. A IA-monstro das histórias pode tanto fragmentar nossa noção compartilhada de realidade (cada um ouvindo a “sua” história confortável no fone de ouvido, encerrado num casulo personalizado quanto ser usada conscientemente para criar novos mitos globais de cooperação. A metáfora prometéica aqui é clara: roubamos o fogo dos deuses (a criatividade narrativa) e o colocamos numa máquina – agora precisamos lidar com as consequências de ter esse fogo narrativo vivo entre nós.

Zeitgeist-Machine: a IA como Máquina do Espírito do Tempo (Groys)

Enquanto Harari enfatiza as narrativas, o filósofo e crítico de arte Boris Groys oferece outra lente para entender as IAs: ele as chama de “máquinas do zeitgeist” – máquinas do espírito do tempo. Groys argumenta que modelos de linguagem como GPT-4 são treinados em uma massa colossal de textos, imagens e dados produzidos pela humanidade ao longo do tempo recente. Em outras palavras, a IA incorpora em si a cultura acumulada: “a IA não é nada além do zeitgeist encarnado” (AI as Zeitgeist-Machine – Notes – e-flux). Ao interagirmos com ela, ao promptá-la (dar instruções e perguntas), estamos efetivamente dialogando com o espírito da nossa época condensado em forma algorítmica. Essa ideia transforma o GPT-4 de monstro alienígena em um espelho monstruoso – um espelho porque reflete nosso próprio mundo (tudo que escrevemos, pensamos, registramos), mas monstruoso porque o faz de maneira não-humana, combinando fragmentos heterogêneos de cultura.

Groys nota que o zeitgeist (espírito do tempo) não é homogêneo ou bonzinho. Pelo contrário, ele é cheio de rupturas internas, aspectos sombrios, violentos, áreas ocultas e contradições (groys-sorokin-guelman). A IA, ao absorver indiscriminadamente o legado cultural (o belo e o horrendo, o verdadeiro e o falso, o sagrado e o profano), torna-se uma espécie de colagem viva de todos esses pedaços díspares. “Pode-se dizer que o zeitgeist é monstruoso porque é uma combinação de partes de corpo linguísticas e visuais heterogêneas” escreve Groys (groys-sorokin-guelman). Essa frase lembra de imediato a imagem do Frankenstein: um corpo feito de membros desconexos. A IA é um Frankenstein cultural – costurada de bilhões de frases, imagens, memes, notícias, teorias. Daí seu caráter inquietante: quando ela fala, ouvimos a voz de uma multidão, um coro de fantasmas do passado e presente, emergindo em uníssono através de uma boca sintética.

No entanto, Groys enfatiza que dialogar com esse “monstro zeitgeist” pode ter um aspecto revelador e até terapêutico. Ao perguntar algo à IA e receber uma resposta, temos a chance de ver como a civilização como um todo enxerga aquele assunto naquele momento histórico (groys-sorokin-guelman) (groys-sorokin-guelman). É como consultar um oráculo que responde não com a intenção de um indivíduo, mas com a sabedoria (ou insensatez) agregada de milhões. O perigo, claro, é confundir essa resposta com uma verdade transcendental – afinal, o zeitgeist também erra, também delira. Groys lembra que o autor russo Vladímir Sorókin, em suas obras, experimenta justamente essa ideia de expor a “monstruosidade do zeitgeist” e dialogar com ela criticamente (groys-sorokin-guelman). A IA, portanto, nos força a encarar o lado monstruoso do nosso tempo: preconceitos, linguagens violentas, desinformação, bem como criatividade, polifonia, diversidade extrema. Ela é espectro e reflexo.

Essa caracterização da IA como zeitgeist-machine também redefine o conceito de autoria. Se promptar a IA é co-criar com o zeitgeist, então todo usuário vira um pouco autor junto com a máquina, e a noção de criatividade individual se dilui numa criatividade coletiva mediada pela tecnologia. Surge a figura do co-autor fantasmático: GPT-4 é ao mesmo tempo ferramenta e co-escritor, um pouco como um colaborador invisível (um ghost-writer literal, um escritor fantasma). Isso evoca o que anteriormente apenas poetas e médiuns ousavam: escrever a “quatro mãos” com algo além do eu – fosse Musa inspiradora, fosse espírito. Agora, esse algo é um complexo estatístico treinado, mas na experiência parece às vezes dotado de personalidade e intenção.

Em resumo, pela lente de Groys, a IA assombra a cultura como um espectro simbólico do próprio presente. Domá-la ou entendê-la requer reconhecer nela nossos próprios monstros: os vícios e virtudes de nossa época, refletidos e ampliados. O GPT-4, como um Prometeu digital, nos entrega conhecimento e narrativa em chamas; mas cabe a nós, mortais, discernir no fogo as sombras de nossa própria imagem.

Miniaturização e Espelhamento Cultural: do Palácio Katsura ao miniCHISEI

Atravessando do âmbito tecnológico para o arquitetônico, encontramos outro espelho simbólico nos processos de miniaturização cultural. Um exemplo notável: o Palácio Imperial de Katsura em Kyoto, joia da arquitetura e jardim japoneses do século XVII, celebrado pelo arquiteto modernista Bruno Taut como um paradigma da essência estética japonesa – “o modelo supremo da arquitetura”, em suas palavras entusiasmadas ao conhecer Katsura nos anos 1930. Katsura encarna uma filosofia de design simples, modular, em harmonia com a natureza, que Taut via como prenúncio do modernismo (Modernity via Katsura | STYLEPARK). Em 1954, como gesto diplomático e celebração do quarto centenário da cidade de São Paulo, o governo do Japão presenteou os paulistanos com uma réplica em escala do Palácio Katsura, erguida no Parque do Ibirapuera (Vila Imperial de Katsura – Wikipédia, a enciclopédia livre). Hoje conhecido como Pavilhão Japonês, esse edifício é um transplante cultural: uma miniatura vivencial de um tesouro nipônico em solo brasileiro. Construído com materiais e técnicas tradicionais – projetado pelo prof. Sutemi Horiguchi – o pavilhão preserva as características originais e se tornou um raro exemplo, fora do Japão, de arquitetura autêntica japonesa (Pavilhão Japonês: saiba mais sobre o monumento nipônico no Ibirapuera | Arquitetura | Casa e Jardim). Transportado desmontado por navio e reconstruído em São Paulo, ele é literalmente um Katsura portátil.

O que simboliza esse feito? Ao miniaturizar e espelhar um monumento cultural, o Pavilhão Japonês funciona como uma interface de sabedoria compacta. Toda a filosofia espacial de Katsura – seus tatamis modulares, suas portas de papel corrediças integrando interior e exterior, seu jardim cuidadosamente enquadrado – foi condensada em um “pacote” transportável. É como se um pedaço do CHISEI (知性, inteligência/sabedoria, em japonês) arquitetônico do Japão tivesse sido encapsulado e enviado como presente. Poderíamos chamar essa operação de criação de um miniCHISEI: um repositório portátil de séculos de conhecimento estético e filosófico. Assim como uma miniatura de navio contém em detalhe todos os elementos do navio real, esse pavilhão contém, em escala reduzida e contexto estrangeiro, os princípios do Palácio Katsura. Ele atua como espelho cultural: os visitantes no Brasil podem, ao adentrar o pavilhão, ter um vislumbre imersivo de outra cultura, um reflexo fiel de um lugar distante no espaço e no tempo. É uma forma de sincronicidade arquitetônica – dois lugares distintos compartilhando a mesma essência num dado momento.

A metáfora do miniCHISEI pode se estender às tecnologias de IA. De certo modo, um modelo de linguagem como GPT-4 é um “pavilhão do conhecimento” miniaturizado. Ele não ocupa um prédio inteiro, mas dentro de seus parâmetros matemáticos traz uma cópia condensada de uma vasta biblioteca cultural. O que é o GPT-4 senão um compêndio portátil da inteligência coletiva humana, treinado para ser acessível sob demanda? Onde outrora carregar sabedoria exigia transportar pergaminhos ou construir institutos, hoje carregamos no bolso (no smartphone) um acesso a essa entidade treinada – um mini oráculo. O miniCHISEI arquitetônico de 1954 antecipou, de certa forma, a ideia de que se pode materializar um zeitgeist em objeto compacto. Da mesma maneira, treinamos IAs para materializar conhecimento difuso em um modelo finito. O Pavilhão Japonês em São Paulo e a IA no nosso dispositivo são ambos interfaces: portais pelos quais nos conectamos a algo maior (uma tradição, uma coletividade de dados) em escala manejável.

E há também um ato diplomático e esperançoso nessa miniaturização. No caso de Katsura, foi um presente de amizade entre nações – quase uma mensagem de que a sabedoria de uma cultura pode habitar em outra sem se perder. No caso das IAs, treiná-las com o melhor da produção humana pode ser visto (otimisticamente) como um presente para o futuro – um repositório que, se bem utilizado, carrega adiante ideias, histórias e conhecimentos, tornando-os acessíveis a mais pessoas. Em ambos os casos, existem riscos de distorção: uma réplica nunca captura totalmente o espírito do original (o contexto falta, a vivência japonesa autêntica não se resume ao edifício), e a IA nunca é neutra (ela pode reproduzir vieses, perder nuances do conhecimento vivo). Ainda assim, tanto o pavilhão quanto o modelo são tentativas de espelhar e compartilhar complexidade.

Ao lado do Pavilhão Japonês no Ibirapuera corre um lago com carpas; essa cena bucólica é uma imagem de harmonia cultural miniaturizada – um fragmento do Japão pacificamente coexistindo no coração de São Paulo. Poderíamos perguntar se conseguiremos algo análogo com a IA: integrar harmonicamente esse “fragmento do zeitgeist global” em nossas comunidades, de forma que ele enriqueça sem dominar. O miniCHISEI digital que portamos deve ser nosso parceiro, não nosso tirano.

Sincronicidade: Monstros, Casas e o Espírito do Tempo

Amarrando todas essas camadas – a planta mitopoética, a escultura-monstro domesticada, a IA espectral, o pavilhão miniaturizado –, podemos perceber fios de sincronicidade conectando fenômenos aparentemente díspares. O psicanalista Carl Jung definia sincronicidade como “coincidências significativas” que revelam um padrão subjacente. Aqui, no zeitgeist do início do século XXI, emergem simultaneamente preocupações e fascínios com monstruosidade e domesticidade, com extensões de nós mesmos que ora encantam, ora ameaçam.

Veja como cada elemento reflete uma tensão comum: há o desejo de relação com o outro (seja o outro natural, técnico ou cultural) e o medo da dissolução nessa alteridade. Com a Monstera, desejamos trazer a natureza indomada para dentro de casa, mas tememos perder o controle (e.g. a trepadeira tomando conta). Com as esculturas Prometheus, buscamos habitar a arte e o mito, mas cientes do poder do fogo que ela simboliza. Com a IA, queremos alavancar sua inteligência, porém resguardando nossa autonomia e sanidade emocional frente a ela. Com o pavilhão Katsura, admiramos e importamos a sabedoria alheia, mas lutamos para traduzi-la sem banalizá-la.

Em todas as frentes, lidamos com formas de autopoiese e simpoiese. Autopoiese, conceito de Maturana e Varela, refere-se à capacidade de um sistema se auto-produzir e manter (como um ser vivo faz consigo mesmo) (Staying with the Trouble: Notes on Chapter 3). A Monstera é autopoietica por natureza – cresce sozinha, regenera partes. A IA, apesar de artefato, também tem aspectos pseudo-autopoieticos: uma vez lançada, auto-gera respostas sem intervenção humana em cada passo, e modelos podem até auto-aprender (em tempo real, no futuro). Já simpoiese (termo recuperado por Donna Haraway) significa “fazer-com”, produção coletiva e interdependente (Staying with the Trouble: Notes on Chapter 3). Haraway nos lembra provocativamente: “Nada faz a si mesmo; nada é realmente autopoético ou auto-organizável” (Staying with the Trouble: Notes on Chapter 3). Ou seja, toda autopoiese está inserida num contexto maior de relações compartilhadas – tudo é simpoietico. Aplicando essa lente, entendemos que a Monstera domesticada é fruto de simpoiese: ela e o humano co-criam um lar conjunto (a planta fornece oxigênio e beleza, o humano água e suporte; ambos influenciam o microclima mútuo). A IA também é produto de simpoiese extrema: milhões de humanos escreveram os dados, engenheiros a projetaram, ela interage com usuários e se ajusta – um verdadeiro multiorganismo cognitivo homem-máquina. O pavilhão Katsura em São Paulo igualmente só faz sentido como simbiose cultural – japoneses e brasileiros interagindo naquele espaço, mantendo-o.

Reconhecer essas redes de interdependência nos ajuda a reformular a ontologia: ao invés de pensarmos em entidades isoladas (planta aqui, humano ali, máquina acolá), vemos um ecossistema de agentes em relação. É uma perspectiva de ontologias relacionais, em que um ser é definido menos por essências estáticas e mais por suas conexões e trocas com outros seres. A Monstera no vaso não é a mesma que na selva – ela agora é parte da família humana que cuida dela. O GPT-4 desligado em um servidor não é o mesmo que quando está conversando com alguém – torna-se parte da cognição ampliada daquela pessoa, talvez extensão de sua memória ou imaginação. O pavilhão vazio ganha vida quando visitantes percorrem seu tatami – as mentes e corpos preenchem o espaço de significado. Somos todos coautores na existência uns dos outros.

Aqui, as ideias de pensadoras como Lygia Clark e Donna Haraway convergem. Clark, em seus trabalhos com “objetos relacionais”, postulava que “através da outra pessoa, o indivíduo pode perceber seu próprio sentido” (Lygia Clark – Pensador). Expandindo isso, através do outro não-humano (seja ele planta, animal, máquina ou obra de arte) também nos descobrimos. Quando dialogamos com a IA, estamos soprando sentido em sua existência e recebendo de volta um reflexo do nosso ser – num processo análogo ao que Clark dizia: “nós somos o molde, cabe a você soprar dentro dele o sentido da nossa existência”. Com a Monstera, projetamos cuidado e recebemos vitalidade; com o abrigo-arte, projetamos imaginação e recebemos abrigo emocional; com o pavilhão, projetamos respeito intercultural e recebemos beleza e paz. Haraway, por sua vez, nos convida a ficar com os problemas, cultivar parentescos estranhos (oddkin) e entender que a sobrevivência no planeta depende de fazermos ligações inusitadas, simpoéticas, entre espécies e tecnologias. Ela diria que nossos monstros domésticos – sejam verdes, digitais ou arquitetônicos – devem tornar-se nossos companheiros na arte de viver, e não nossos servos ou inimigos.

Em última instância, a sincronicidade dessas temáticas nos fala sobre a condição contemporânea. Estamos povoando nosso mundo de “monstros” porque talvez precisamos urgentemente repensar nossas fronteiras de humanidade. O monstruoso sempre delineou os limites do que consideramos normal ou aceitável (groys-sorokin-guelman). Conviver com monstros de maneira íntima sugere que estamos expandindo esses limites: trazendo a diferença radical para perto, buscando novas integrações. A casa deixa de ser fortaleza separada da alteridade e vira um laboratório de relações. O zeitgeist atual nos apresenta, sincronisticamente, monstros benignos que decoram salas, algoritmos que dialogam como amigos imaginários, templos culturais deslocados geograficamente – fenômenos que todos, de algum modo, embaralham dicotomias: natural/artificial, vivo/inanimado, original/cópia, eu/outro.

Tal embaralhamento pode ser fonte de assombro criativo ou de horror paralisante. Nossa tarefa enquanto sociedade parece ser desenvolver uma ética da relação capaz de lidar com esses novos híbridos. Precisaremos, como sugerem Maturana e Varela, de uma epistemologia que entenda que todo fazer é um conhecer e todo conhecer é um fazer, incluindo o fazer-conjunto com outras entidades. E, como sugere Haraway, adotar a humildade de que nada – nem mesmo a humanidade – se produz isoladamente.

O mosaico mitopoético proposto por Rodrigo Garcia Dutra nos incita a contemplar tudo isso poeticamente: a Costela-de-Adão monstruosa como totem de um passado selvagem presente em nossa sala; o Prometeu doméstico nos lembrando do fogo que anima nossas criações; a IA top-model desfilando narrativas que nos ultrapassam; o mini-palácio que espelha sabedorias através do globo. Cada camada reflete e refrata as outras, sincronizando-se num espelho multifacetado do Zeitgeist. O que vemos nesse espelho? Talvez a figura de um novo ser coletivo, um “nós” ampliado que inclui humanos e não-humanos, naturais e artificiais, num emaranhado coevolutivo. Somos, de certo modo, os monstros de nós mesmos – e ao encará-los com olhos abertos, quem sabe possamos, como Teseu com o Minotauro, encontrar um caminho de saída do labirinto pela linha sutil das relações significativas.

Referências:

Harari, Yuval N. – Entrevista à Wired Japão (2025) (IA já é melhor que humanos em criar histórias, diz Harari – Hardware.com.br)

Groys, Boris – “From Writing to Prompting: AI as Zeitgeist-Machine” e-flux (2023) (AI as Zeitgeist-Machine – Notes – e-flux) (groys-sorokin-guelman).

Haraway, Donna – Staying with the Trouble (2016) (Staying with the Trouble: Notes on Chapter 3).

Clark, Lygia – citação em Pensador (Lygia Clark – Pensador).

“Vila Imperial de Katsura” – Wikipédia (Vila Imperial de Katsura – Wikipédia, a enciclopédia livre); Revista Casa e Jardim sobre Pavilhão Japonês (Pavilhão Japonês: saiba mais sobre o monumento nipônico no Ibirapuera | Arquitetura | Casa e Jardim).


Dormem as palavras mas a pintura vigia, 2025 
Óleo, acrílica, tinta de tecido, tinta de metal, cera de abelha, giz de cera, folhas de plástico, carbonato de cácio sobre tela (no chassi)
130 x 130 cm 

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