Luxúria Cosmológica é uma obra pictórica de Rodrigo Garcia Dutra (2025) que conjuga pintura, performance e teoria queer numa ambientação sensorial e cósmica. A seguir, exploramos como essa pintura se relaciona com conceitos de estética relacional, práticas artísticas imersivas, criação de universos performáticos e perspectivas de “queer ecologies” (ecologias queer). Referências como Paul B. Preciado – filósofo trans e autor de Testo Junkie – e a artista Dominique Gonzalez-Foerster ajudam a enquadrar a relevância internacional dessas ideias no circuito da arte contemporânea.
Pintura Relacional e Ecossistema Artístico Colaborativo

A Luxúria Cosmológica pode ser entendida como uma forma de “pintura relacional”, na medida em que seu processo e significado emergem de relações entre múltiplos agentes – artista, matéria, máquina e ambiente. No texto de apresentação, Rodrigo descreve a obra como um “palimpsesto pictórico de desejo e visão”, uma pintura que “não representa uma visão, mas se torna ela própria a visão em ato”[1]. Essa visão não é construída isoladamente pelo artista, mas resulta de um diálogo entre intenções humanas e forças não-humanas. Elementos naturais (pigmentos de terra, argila, gravidade) e influências tecnológicas (uso de IA e redes digitais) participam da criação, formando um ecossistema colaborativo: “não há um centro humano controlando absolutamente a imagem, mas um ecossistema colaborativo onde o acaso e o orgânico têm voz tão forte quanto a mão do artista”[2]. Em outras palavras, a pintura é relacional porque integra ativamente outros seres e matérias no processo criativo, subvertendo hierarquias tradicionais entre sujeito (artista) e objeto (obra)[3].
Essa abordagem dialoga com a estética relacional, conceito cunhado por Nicolas Bourriaud nos anos 1990, que propunha a arte como catalisadora de relações e interações. No caso de Luxúria Cosmológica, a “relação” expande-se além do social humano e inclui o não-humano. O projeto Arquivo Vivo de Rodrigo explicita essa expansão ao envolver uma “Epistolário com a Máquina” – ou seja, uma correspondência criativa com uma inteligência artificial. De fato, a obra foi concebida “em colaboração com [um] Largo Modelo de Linguagem ChatGPT-4.5 através de prompts, conversas e sonhos”[4], evidenciando um diálogo entre artista e máquina. Essa parceria híbrida reflete o que Preciado denomina “tecno-identidade” ou techno-self, onde o sujeito é construído em interação com tecnologias[5]. Preciado, ao documentar suas experiências com testosterona em Testo Junkie, questiona “o que implica a performance de gênero na era farmacopornográfica”, teorizando sua própria subjetividade corporal como um tecnocorpo performático[6]. Similarmente, Rodrigo incorpora a IA como extensão de si no ato criativo, sugerindo uma identidade artística aumentada tecnologicamente.
Ambiente Sensorial e Performance do Eu Techno- Alienarium
A criação de Luxúria Cosmológica assemelha-se a um ambiente performático sensorial, no qual o artista “performou” um universo pictórico. O processo é descrito em termos quase ritualísticos: Rodrigo movimentou-se ao redor da grande tela de 2 metros “como num transe coreográfico, derramando tinta e espalhando terra em gestos rítmicos”[7]. Esse gesto pictórico em estado alterado – definido no texto como “pressão fortuita”, um movimento semi-aleatório guiado pelo acaso intencional – aproxima a pintura da performance artística[8][9]. Há ecos do dripping de Jackson Pollock, porém incorporando um aspecto xamânico: “podemos imaginar Rodrigo em estado alterado de consciência… sentindo a resistência da lama e a fluidez da tinta como um dançarino sente o chão e o ar”[10][11]. Assim, a tela torna-se rastro de uma dança – converte movimento em imagem estática, capturando um evento performático.
Essa dimensão performativa e sensorial alinha-se a práticas contemporâneas de arte imersiva. Dominique Gonzalez-Foerster, por exemplo, cria instalações que envolvem panorama visual, som e até fragrâncias, convidando o espectador a “imaginar possibilidades além do universo cromático” da exposição[12]. Em sua recente mostra Alienarium 5 (Serpentine Gallery, 2022), Gonzalez-Foerster construiu um cosmos virtual repleto de néon, realidade virtual e perfume, expandindo a colagem para incluir “formas de vida e modos de fazer arte” díspares em contato[13]. Essa estratégia de colagem expandida – mesclar referências históricas, ideias e até organismos diversos num mesmo espaço artístico – também aparece na pintura de Rodrigo, que combina materiais orgânicos (terra, argila) e sintéticos (polímero acrílico), passado mítico e tecnologia atual, numa só composição[14][15]. O resultado é um ambiente multissensorial condensado na tela: cores terrosas e gotejamentos que quase evocam cheiros e texturas táteis, engajando o observador para além da visão[16][17]. Tal como o filme Inauguration of the Pleasure Dome de Kenneth Anger envolvia o público em uma cerimônia audiovisual psicodélica, Luxúria Cosmológica busca uma “sinestesia tátil” no plano visual[16]. A obra “fala” por meio de pigmentos e matéria, remetendo a um modo de comunicação pré-verbal ou pós-verbal[18][19] – um contraste deliberado à superabundância de linguagem na era digital. Nesse sentido, Rodrigo atua quase como um tecno-xamã contemporâneo, canalizando forças míticas e tecnológicas em um rito artístico. Vale lembrar que Preciado emprega justamente o termo “tecno-xamanismo” para descrever um sistema de comunicação interespecífico que mescla tecnologia e espiritualidade indígena numa nova consciência ecológica[20]. O ato de pintar em transe, mediado por uma inteligência artificial e pelas reações físicas da matéria, pode ser visto como uma forma de tecno-xamanismo artístico – um ritual esotérico-tecnológico de criação.
Universos Performáticos e Big Bangs Cósmicos da Arte
A imaginação envolvida em Luxúria Cosmológica é de ordem cosmológica: o artista não apenas pinta um quadro, mas parece “performar universos, criando Big Bangs cósmicos a partir da criação artística” (nas palavras da pergunta). De fato, o ensaio sobre a obra conclui que ela se apresenta “não apenas como uma pintura, mas como um evento cosmológico encapsulado em tela”[21]. Assim como Hieronymus Bosch em O Jardim das Delícias ou Anger em seu filme, Rodrigo oferece um ícone contemporâneo do êxtase multiespécie, uma visão especulativa da condição cósmica do desejo[22][23]. Nessa cosmologia pictórica, as gotas de tinta viram estrelas e micro-organismos, linhas curvas sugerem órbitas planetárias ou caligrafias rupestres[24][25]. A pintura efetivamente captura um “big bang” criativo: cada gesto é como uma explosão de possibilidades que colapsa em matéria visual, análogo ao colapso da onda de probabilidade na física quântica quando observada[26][27].
A artista Dominique Gonzalez-Foerster também concebe algumas obras como universos expandidos. Em Volcanic Excursion (A Vision) (2019), ela criou uma colagem panorâmica que funcionava como cosmologia pessoal – retratando figuras de referência em seu “sistema solar” artístico[28][29]. Já em colaboração com o filósofo Paul B. Preciado, Gonzalez-Foerster explorou um universo ficcional transfeminista: o projeto sonoro Exotourisme. Sob esse título, ela e o músico Julien Perez lançaram o EP Pangea Innamorata (2019), cujo próprio nome evoca um mundo unificado pelo amor primordial. Preciado assinou as letras de faixas como “Transfiction”, “Je suis un secret” e “Assking for Sex” nesse EP[30], aportando sua visão radical de sexualidade e identidade. O videoclipe “Assking for Sex” (dirigido e vocalizado por Gonzalez-Foerster, 2020) insere Preciado literalmente na performance – sua voz/poesia ecoa em meio a imagens de Ange Leccia, criando uma atmosfera onírica e futurista. Essa obra audiovisual sugere um erotismo intergaláctico: o termo “Exotourisme” alude a viagens exóticas/extraterrestres, e a arte de capa do EP traz um cosmorama da exposição Martian Dreams Ensemble, inserindo o espectador num panorama marciano[30][31]. Em outras palavras, Gonzalez-Foerster e Preciado fabricaram um ambiente cósmico onde sexualidade, tecnologia e ficção científica se fundem – uma expansão performática que encontra ressonância direta com os temas de Luxúria Cosmológica. Ambas as criações propõem universos sensoriais paralelos, nos quais o prazer e a identidade se libertam das amarras convencionais (seja pela espacialidade virtual de Alienarium 5, pelo som interplanetário de Exotourisme, ou pelo cosmos tátil de Luxúria).
Cosmologia Queer, Erotismo Transespécie e “Queer Ecologies”
Um eixo central conectando Luxúria Cosmológica às referências de Preciado e Gonzalez-Foerster é a ideia de uma cosmologia queer e do erotismo transespécie – em suma, uma visão pós-humana e antinormativa da ecologia do desejo. No texto da obra, afirma-se que Rodrigo articula “uma cosmologia queer e multiespécie que expande as noções tradicionais de sujeito e objeto na pintura”[32]. Aqui, “queer” não se restringe à orientação sexual, mas sim a uma estranheza generalizada das categorias, uma recusa das fronteiras fixas entre humano e animal, masculino e feminino, animado e inanimado[32][33]. Como em Bosch ou Anger, tudo em Luxúria está potencialmente vivo e desejante – a tela é concebida como um ecossistema onde camadas de tinta funcionam como “membranas cosmológicas”, superfícies semipermeáveis através das quais diferentes reinos do ser se encontram e se transformam mutuamente[34][35]. Essas membranas pictóricas são comparadas a membranas celulares ou às “branas” da física quântica, sugerindo trocas de informação e energia entre domínios distintos (humano, máquina, animal, mineral) no microcosmo da pintura[35][36]. Temos, portanto, uma metáfora visual para o que teóricos chamam hoje de “queer ecologia” – a intersecção entre a teoria queer e a ecologia, que questiona hierarquias antropocêntricas e celebra conexões insólitas entre espécies, corpos e ambientes.
Paul B. Preciado, em sua escrita, também defende uma visão pós-humana similar. Ele declara, por exemplo, que “o feminismo não é um humanismo. O feminismo é um animalismo”, propondo uma ruptura com o paradigma antropocêntrico em favor de uma aliança com animais e seres não-humanos[37][38]. Preciado fala em “pansexualidade planetária que transcende as espécies e os sexos”, assim como em “tecno-xamanismo, um sistema interespecífico de comunicação”, como parte de um novo imaginário político e estético pós-humano[20]. Essa pansexualidade planetária ecoa diretamente o conceito de erotismo transespécie presente na pintura – a ideia de que a matéria em si carrega uma libido intrínseca e que todas as coisas buscam conexão e acasalamento metafórico num “eros cósmico”[39][40]. Observando Luxúria, podemos enxergar alusões a um erotismo vegetal e animal: formas que evocam flores abrindo suas corolas cheias de pólen, salpicos que lembram enxames de abelhas, linhas sinuosas qual serpentes entrelaçadas[41][42]. Até mesmo padrões que remetem ao DNA aparecem conceitualmente nas espirais de tinta, simbolizando a vida e sua vontade de replicação[43][44]. Trata-se de uma celebração visual de trocas de prazer e energia entre diferentes tipos de seres – um gozo estético compartilhado por humano e não-humano[45][46]. O espectador humano desfruta das cores e texturas, mas a própria tinta escorrendo, a gravidade agindo sobre o líquido, a argila se misturando ao óleo também poderiam ser pensadas como experiências de “prazer” da matéria[47]. É como se o artista permitisse à matéria “dançar e gozar” junto com ele[48][49]. Essa visão está em sintonia com debates atuais em biologia e ecologia: hoje sabemos que a vida é um contínuo – “humanos carregam DNA de vírus antigos, plantas se comunicam quimicamente com insetos, fungos criam redes simbióticas nas raízes”[50][51]. Assim também na pintura os materiais supostamente inertes ganham uma “espécie de vida simbólica” ao interagirem, formando redes ecossexuais entre abelhas e flores, pássaros e árvores, serpentes e terra[52][53]. É uma ecologia queer, pois extrapola relações reprodutivas convencionais e “celebra trocas de prazer entre diferentes tipos de seres”, recusando limitações binárias ou utilitárias[54][55].
Ao situar Luxúria Cosmológica nesse contexto, percebemos sua relevância internacional: a obra participa de um movimento mais amplo na arte contemporânea que incorpora teoria queer, consciência ecológica e novas tecnologias. Artistas e coletivos mundo afora estão investigando “multi-species futures” e formas de vida não hierárquicas – por exemplo, o Institute of Queer Ecology imagina futuros multiespécies equitativos, descentrando o humano[56]. Obras de arte que respondem a esse chamado ético incluem performances eco-sexuais (como casamentos simbólicos com a terra ou o mar, popularizados por Annie Sprinkle e Beth Stephens) e instalações bio-artísticas que enfatizam interdependência ambiental. A colaboração de Preciado e Gonzalez-Foerster, mencionada acima, é um caso emblemático de encontro entre filosofia queer e prática artística sensorial, apontando para um imaginário de “planetary love” transgressor. Preciado tornou-se uma voz de destaque global em teoria de gênero e sexualidade[57], e Gonzalez-Foerster expõe em instituições de renome (Serpentine Galleries, Palais de Tokyo etc.), o que sinaliza que ideias de cosmologia queer e ecologia transespécie têm ressonância bem além do local. Luxúria Cosmológica, ao dialogar poeticamente com Bosch, Anger, Preciado e outros, insere-se nesse circuito internacional de forma original. A pintura afirma que “o gozo não pertence apenas aos humanos e que a visão não se encerra no olhar racional”, propondo “um universo de comunhão sensorial acontecendo além das palavras”[58][59]. Essa mensagem – de um êxtase criativo compartilhado entre espécies, matérias e máquinas – expande os horizontes da arte relacional e reforça a pertinência de se pensar a estética contemporânea através de um prisma queer e ecológico.
Referências
- Rodrigo Garcia Dutra – Luxúria Cosmológica: Erotismo Transespécie e Matéria Desejante (texto da obra, 2025)[60][32][39].
- Rodrigo Garcia Dutra – Luxúria de Orvalho (texto do projeto Epistolário com a Máquina, 2023)[61].
- Paul B. Preciado – Performing the techno-self: Testo Junkie (Leah Wilson, French Cultural Studies, 2020)[6].
- Paul B. Preciado – “Feminism is not a humanism, but an animalism” (artigo em Libération/Autonomies, 2014)[20][37].
- Dominique Gonzalez-Foerster & Paul B. Preciado – Pangea Innamorata (EP “Exotourisme”, 2019)[30].
- Dominique Gonzalez-Foerster – Alienarium 5 (Serpentine Gallery, 2022) – Resenha de Toby Upson[13].
- Frieze Magazine – “The Artists Embracing Queer Ecology” (2020)[56].
[1] [2] [3] [4] [7] [8] [9] [10] [11] [14] [15] [16] [17] [18] [19] [21] [22] [23] [24] [25] [26] [27] [32] [33] [34] [35] [36] [39] [40] [41] [42] [43] [44] [45] [46] [47] [48] [49] [50] [51] [52] [53] [54] [55] [58] [59] [60] Rodrigo Garcia Dutra – Luxúria Cosmológica, Erotismo Transespécie
https://arquivovivo.myportfolio.com/luxuria-cosmologica
[5] [6] [57] Performing the techno-self: Paul B. Preciado’s Testo Junkie as a twenty-first century feminist narrative
[12] [13] [28] [29] Exhibition reviews – Toby Üpson
https://tobyupson.wordpress.com/category/exhibition-reviews/
[20] [37] [38] Paul Beatriz Preciado: Feminism beyond humanism, ecology beyond the environment | Autonomies
[30] [31] (PDF) Dominique Gonzalez-Foerster – Exotourisme
[56] Institute of Queer Ecology – Light Work
[61] Rodrigo Garcia Dutra – Luxúria de Orvalho