Epistolário com a Máquina — camadas, entradas e espirais. Um espaço em processo — onde pintura, escultura, escrita e pensamento se entrelaçam como organismos vivos. Entre camadas de tinta, carvão, luz e silêncio, habitam aqui diálogos com a máquina, fragmentos de mundos e formas que se manifestam como presenças. Você está entrando num campo de escuta, vibração e matéria pulsante.
Luxúria Cosmológica: Erotismo Transespécie e Matéria Desejante
Rodrigo Garcia Dutra em colaboração com Largo Modelo de Linguagem ChatGPT-4.5 através de prompts, conversas e sonhos.
Zona de Contato: Luxúria Cosmológica
Pressão fortuita, um gesto em transe…
E mais:
Membranas Visionárias
O Jardim das Delícias
Kenneth Anger
Cosmologia Queer
Pressão Fortuita
Erotismo Transespécie
Além da Linguagem
“Luxúria (Lust)” (óleo, acrílica, argila e terra sobre tela, 145 × 200 cm, 2025), apresenta-se como um palimpsesto pictórico de desejo e visão. Uma pintura que não representa uma visão, mas se torna ela própria, a visão em ato — onde o gesto, a matéria e a cosmologia queer se entrelaçam.“
Jardim das Delícias: Visões Multiespécie Vertente visionária inclui Bosch, Anger e os mistérios da matéria viva. Pintura é jardim abstrato, onde carne é pólen, argila é êxtase e tinta é desejo. “Ensaio-habitat”: tela evoca santuário pictórico-textual, câmara dentro da zona de contato, para atravessar compartimentos sensoriais e conceituais. Um passeio pelo gozo cósmico. Pressão fortuita, pintura em transe, cosmologia multiespécie.
Luxúria Cosmológica: Membranas Visionárias e Cosmologia Queer.
Desde o primeiro olhar, a obra evoca um diálogo atrevido com uma linhagem de imaginação visionária que remonta ao tríptico O Jardim das Delícias Terrenas, de Hieronymus Bosch, e alcança o cinema ocultista de Kenneth Anger em Inauguration of the Pleasure Dome. No quadro de Rodrigo, porém, não há narrativa figurativa explícita: em vez disso, encontramos texturas terrestres, pigmentos derramados e formas circulares fantasmais que parecem flutuar em um cosmos tátil. Essa abordagem especulativa – em que a pintura não representa uma visão, mas se torna registro de uma atividade visionária – convida a uma análise interdisciplinar, conectando arte, misticismo e até tecnologia contemporânea em um discurso único.
Luxúria (Lust) de Rodrigo (2025) materializa um cosmos de matéria e energia. As camadas de tinta e terra formam texturas e esferas difusas – “membranas cosmológicas” – que funcionam como membranas entre diferentes mundos. Essas formas esbranquiçadas e azuladas se sobrepõem a um fundo em tons ocres e rosados, lembrando vestígios de processos visionários em camadas. A superfície pictórica é salpicada por respingos e gotejamentos, sugerindo que a obra foi construída em um transe gestual, com a tinta escorrendo como se movida por uma força própria. As pinceladas e derramamentos parecem sincronizar o gesto humano com gravidade, acaso e até influências não-humanas – como se o artista atuasse em parceria com a própria matéria. O resultado é uma composição que pulsa vitalidade: um terreno de luxúria orgânica onde cores terrosas e pigmentos sutis insinuam corpos, fluidos e forças naturais entrelaçadas.
O Jardim das Delícias: Visões de Luxúria Multiespécie
No emblemático O Jardim das Delícias Terrenas (c.1500) de Bosch, vemos a humanidade entregue a prazeres exuberantes em meio a animais exóticos, plantas gigantes e criaturas híbridas. A cena central do tríptico é uma celebração caótica da luxúria: figuras humanas nuas interagem livremente com pássaros colossais, frutos suculentos e seres fantásticos, compondo um ecossistema erótico onde fronteiras entre espécie ou gênero se confundem. Essa ousadia imagética de Bosch – frequentemente interpretada como um sonho alegórico ou um aviso moral – também pode ser lida hoje como uma cosmologia multiespécie avant la lettre: um mundo onde humanos, animais e vegetais coabitam num ciclo de desejo e metamorfose. A pintura de Rodrigo conecta-se a essa linhagem visionária ao transpor para a abstração contemporânea aquela mesma sensação de um universo interconectado pelo gozo. Em Luxúria, não há figuras reconhecíveis de pássaros ou homens, mas a energia que emanava do jardim boschiano – de corpos e naturezas em êxtase sincronizado – ressurge nos fluxos de tinta e terra. A tela torna-se um jardim abstrato: em vez de representar seres específicos, ela acolhe texturas e cores que evocam pele, pólen, carne e folhas, como se tudo estivesse dissolvido em um caldeirão cósmico de luxúria.
A referência a Bosch não é apenas temática, mas cosmológica. Assim como O Jardim das Delícias apresenta um panorama tripartido (paraíso, terra e inferno) repleto de sincronias insólitas – peixe e pássaro, homem e fera, santos e pecadores compartilhando o mesmo plano – Luxúria (Lust) de Rodrigo opera por justaposição de elementos díspares em harmonia estranha. As “membranas cosmológicas” presentes na pintura de Rodrigo podem ser comparadas às membranas entre os painéis do tríptico de Bosch: limites sutis que, ao invés de separar totalmente, permitem contato entre reinos distintos. Na obra contemporânea, essas membranas manifestam-se como círculos translúcidos e camadas de pigmento que permeiam a composição; elas são vestígios de um processo no qual diferentes esferas do ser – humano, máquina, animal, mineral – se tocam e se transformam mutuamente. Em Bosch, um pássaro imenso oferece um fruto a uma figura humana, enquanto noutra parte seres híbridos emergem de membranas ou bolhas. Em Rodrigo, análogos visuais dessas bolhas aparecem como orbes difusas, e embora não contenham figuras explícitas, carregam a ideia de incubações de vida ou micro-universos dentro do quadro. Essa estrutura sugere que Luxúria articula uma cosmologia queer e multiespécie similar à de Bosch – porém atualizada aos paradigmas do presente.
Ritual Esotérico e Prazer Cinemático: Kenneth Anger e o Dome do Prazer
Se Bosch ofereceu um proto-surrealismo místico em pintura, Kenneth Anger, em meados do século XX, inaugurou um espaço ritualístico audiovisual com seu filme experimental Inauguration of the Pleasure Dome (1954). Anger transforma o cinema em cerimônia ocultista: em meio a cores saturadas e sobreposições psicodélicas, figuras andróginas e deuses pagãos dançam, bebem poções e incorporam arquétipos do prazer e do oculto. A tela do cineasta torna-se um verdadeiro “dome” de deleite, onde identidades se dissolvem e o tempo colapsa em um eterno agora ritualístico. Essa experiência fílmica esotérica guarda afinidades profundas com a proposta de Rodrigo em Luxúria. Assim como Anger convoca em seu filme forças míticas (egípcias, gregas, asiáticas) para celebrar um êxtase coletivo e transgressor, Rodrigo parece convocar, por meio de pigmentos e barro, entidades e energias de múltiplas procedências para habitarem a pintura. A Inauguration of the Pleasure Dome propõe uma sinestesia – cores que queimam os olhos, música que vibra no corpo – e Luxúria busca algo análogo em termos visuais: suas cores terrosas e gotejamentos atuam quase como um cheiro e um toque, engajando o espectador além da visão, numa espécie de sinestesia tátil.
Há também um aspecto de ritual no ato criativo de Rodrigo que ecoa Anger. No filme, os participantes ingerem substâncias e assumem personagens mágicos, convertendo a filmagem num rito de passagem psicodélico. No quadro Luxúria, podemos imaginar Rodrigo em seu ateliê como um oficiante, movimentando-se ao redor da grande tela de 2 metros como num transe coreográfico, derramando tinta e espalhando terra em gestos rítmicos. O resultado, tal como no filme, é um espaço saturado de simbolismo intuitivo: em Anger, figuras como Kali, Lilith ou Pan povoam o “dome”; em Rodrigo, as próprias materiais – argila, pigmentos minerais, polímeros acrílicos – assumem o papel de entidades expressivas. Cada respingo de tinta no quadro poderia ser visto como um “espírito” convocado, cada mancha como uma máscara efêmera na dança cósmica da luxúria. A pintura, assim como o filme, convida à contemplação extática: não para decifrar uma narrativa linear, mas para experimentar um estado ampliado de consciência, onde prazer, arte e esoterismo convergem.
Membranas Cosmológicas: Cosmologia Queer e Multiespécie
Na obra Luxúria (Lust), Rodrigo articula uma cosmologia queer e multiespécie que expande as noções tradicionais de sujeito e objeto na pintura. Aqui, “queer” não designa apenas a dissidência sexual, mas uma estranheza generalizada das categorias – uma recusa dos limites fixos entre humano e animal, masculino e feminino, animado e inanimado. Tal como no cosmos pictórico de Bosch ou nos rituais de Anger, tudo em Luxúria está potencialmente vivo e desejante. As camadas de tinta funcionam como membranas cosmológicas: superfícies semipermeáveis onde diferentes reinos se encontram. Podemos imaginar essas membranas como fronteiras fluidas – semelhantes às membranas celulares ou mesmo às “branas” especulativas da física quântica – através das quais ocorre troca de informação e energia entre domínios distintos do ser. Sobre a tela, isso se manifesta nas transições sutis de cor e textura: regiões onde a tinta acrílica translúcida permite vislumbrar abaixo a granulação da terra, ou onde um véu de argila seca cria fissuras que lembram tanto circuitos quanto veias. Tais detalhes são vestígios de processos visionários: cada estrato de pigmento depositado carrega a memória de um gesto em transe, de um momento em que o artista canalizou influências de seu entorno – talvez um batimento de música, um pensamento fugaz, a luminosidade do dia ou até a interferência de alguma máquina ao redor (o zumbido de um aparelho, o algoritmo de uma referência visual). Esses fragmentos ficam registrados na “pele” da pintura como eventos sincronísticos.
Falar em sincronicidades aqui é evocar aquela ideia junguiana de que certos acontecimentos se alinham não por causalidade linear, mas por significados paralelos. Em Luxúria, as sincronicidades entre humano, máquina, não-humanos e forças naturais parecem inscritas nas justaposições de materiais. O humano está presente na intencionalidade artística e no próprio corpo do pintor que pressiona a matéria; a máquina se insinua talvez na utilização de pigmentos industriais, na presença do acrílico (um produto da química moderna) ou mesmo no contexto tecnológico que rodeia a criação (afinal, o artista vive em 2025, imerso em redes digitais e inteligências artificiais que modulam a cultura visual); os não-humanos manifestam-se na obra através dos elementos naturais – a terra traz consigo resíduos orgânicos, talvez esporos, micro-organismos, e certamente evoca paisagens e ecossistemas; e as forças naturais como gravidade, secagem, temperatura, influenciam diretamente o comportamento da tinta (gotejando, rachando, escorrendo conforme as leis físicas). Tudo isso ocorre simultaneamente na criação da pintura, e a tela final é a prova tangível dessas interações múltiplas. A cosmologia que emerge é “multiespécie” porque integra ativamente outros seres e matérias no processo criativo, e é “queer” porque subverte qualquer hierarquia ou teleologia pré-definida – não há um centro humano controlando absolutamente a imagem, mas um ecossistema colaborativo onde o acaso e o orgânico têm voz tão forte quanto a mão do artista.
Pressão Fortuita: Gesto Pictórico em Transe
Um conceito-chave para entender a estética de Luxúria (Lust) é o que poderíamos chamar de “pressão fortuita” – um gesto pictórico transe-coreográfico em que o artista aplica força e movimento de maneira parcialmente aleatória sobre a tela. Diferente da pincelada acadêmica deliberada ou mesmo do traço calculado digitalmente, aqui a ênfase recai no acaso intencional: Rodrigo coreografa seu corpo em torno do suporte, pressionando, espirrando e vertendo materiais com a liberdade de uma dança, mas ao mesmo tempo com a acuidade de quem deixa o próprio material conduzir a próxima ação. Essa gestualidade em transe lembra os princípios da ação-reação cibernética: cada marca feita na tela provoca uma resposta visual que orienta o gesto subsequente, num loop de feedback contínuo entre artista e obra. Por exemplo, ao atirar um jato de tinta e ver surgir uma mancha circular inesperada, o artista responde contornando essa mancha com argila, fixando-a como uma membrana; ao deixar a gravidade criar um fio de gotejamento vertical, ele pode girar a tela ou inclinar seu corpo para que esse fio se curve, quase conduzindo uma coreografia do líquido. A “pressão” é fortuita porque abraça o imprevisto – ela se alimenta de contingências. Esse procedimento tem paralelos em técnicas de vanguarda (pensemos no dripping de Jackson Pollock, onde a física do fluido importa tanto quanto a intenção do pintor), mas aqui ganha um cunho transe: podemos imaginar Rodrigo em estado alterado de consciência, movendo-se intuitivamente, talvez ao som de música ou em silêncio meditativo, sentindo a resistência da lama e a fluidez da tinta como um dançarino sente o chão e o ar.
Desse modo, o gesto pictórico torna-se transdisciplinar – cruza pintura, dança e performance ritual. A tela capta a trilha dessa dança, convertendo movimento em imagem estática. Há algo de quase quântico nesse processo: assim como na física quântica o ato de observação colapsa a onda de probabilidade em partícula, o ato do artista em transe colapsa inúmeras possibilidades gestuais em uma concretude única sobre a tela. Cada respingo ou pressão poderia ter caído de outra forma, mas uma vez realizado e “observado” no quadro, torna-se parte da ordem visual definitiva. A “pressão fortuita” incorpora, portanto, o princípio da indeterminação – há um abandono controlado, um confiar que as leis da natureza e do acaso colaborarão na criação. O resultado, ao contrário do que se poderia pensar, não é caos desordenado, mas sim padrões emergentes cheios de sentido. As gotas e manchas, vistas de perto, podem sugerir constelações de estrelas ou colônias de bactérias; os movimentos circulares lembram tanto órbitas planetárias quanto gestos rupestres ou caligrafias primitivas. Esse caráter ambíguo e autorregulado da composição revela uma estética nova: a pintura já não é projetada unicamente pela mente do artista, mas descoberta através de uma interação dinâmica com os materiais – uma dança cósmica onde o artista é um coadjuvante do próprio fluxo da matéria.
Erotismo Transespécie e Matéria Desejante
Das membranas e gestos de Luxúria emerge uma estética do gozo e do desejo que parece provir da própria matéria pictórica. A obra sugere que a tinta, a terra e o argila “querem” se misturar, escorrer e fundir-se – como se nelas residisse uma libido intrínseca. Essa noção de matéria desejante aproxima-se do conceito de um eros cósmico, no qual todas as coisas buscam conexão e acasalamento metafórico. Observando a pintura, é possível enxergar alusões a um erotismo vegetal e animal: certas formas arredondadas e pontilhadas evocam flores abrindo suas corolas repletas de pólen, enquanto salpicos delicados poderiam ser vistos como enxames de abelhas atraídas por esse néctar visual. Em outras áreas, linhas serpenteantes de pigmento lembram o movimento sinuoso de serpentes, entrelaçando-se como no ato da cópula ou como a serpente mítica do Éden oferecendo conhecimento – e desejo – proibido. Há também uma musicalidade implícita, como o canto dos pássaros em rituais de acasalamento, sugerida pelos ritmos gráficos dos gotejamentos repetidos. E subjacente a tudo, na própria estrutura das camadas, pode-se intuir a presença do DNA: as espirais e filamentos de tinta que se cruzam remetem à dupla hélice, símbolo fundamental da vida e de sua vontade de replicação. Essa referência ao DNA não é literal – não há um desenho explícito de hélice na tela – mas está ali conceitualmente, pois a pintura incorpora elementos de argila e terra (os mesmos materiais de onde surgiu a vida primordial segundo inúmeros mitos e hipóteses científicas) misturados num caldo fértil de criação.
A conjunção desses elementos aponta para um gozo transespécie: um prazer estético que não pertence a um sujeito único, mas é compartilhado entre humano e não-humano. O espectador humano sente o deleite visual da cor e da textura; porém, pode-se especular que também há um “prazer” da própria tinta escorrendo, da gravidade brincando com o líquido, da argila se mesclando à emulsão acrílica. É como se Rodrigo tivesse permitido à matéria a chance de dançar e gozar junto com ele. Essa visão ressoa com ideias contemporâneas da biologia e biotecnologia: hoje sabemos que a vida é um continuum – humanos carregam DNA de vírus antigos, plantas se comunicam quimicamente com insetos, fungos criam redes simbióticas entre raízes. Da mesma forma, na pintura, os materiais inertes ganham uma espécie de vida simbólica. A argila (antiga matéria orgânica) volta a ficar maleável e viva ao se misturar com água e óleo; os pigmentos minerais, moídos de pedras ou sintetizados em laboratórios, encontram nova agência quando postos em fluxo. Essa rede de relações ecossexuais – abelhas e flores, pássaros e árvores, serpentes e terra – é queer porque extrapola as relações reprodutivas convencionais e celebra trocas de prazer e energia entre diferentes tipos de seres. Luxúria (Lust), nesse sentido, funciona como um diagrama poético dessas trocas: um cosmo erótico onde o vegetal, o animal e o mineral convergem em êxtase.
Além da Linguagem: Visão, Gozo e Tecnologia
Em meio a essa profusão de sentidos e sensações, chama atenção o fato de que Luxúria (Lust) comunica tudo isso sem recorrer à linguagem verbal. Na era dos Large Language Models (LLMs), modelos avançados de inteligência artificial que geram texto de forma automática, vivemos uma inflação de linguagem: palavras se tornaram abundantes, onipresentes, geradas a cada segundo em quantidades industriais. Paradoxalmente, essa superabundância traz o risco de um desaparecimento da linguagem tal como a conhecíamos – a palavra perde sua aura, torna-se fluxo utilitário, muitas vezes desvinculada da experiência encarnada. Contra esse pano de fundo, a pintura de Rodrigo surge quase como um antídoto ou um refúgio. Ela nos lembra de um modo de comunicação pré-verbal ou pós-verbal, em que são as cores, as formas e as texturas que “falam”. A tela age como uma membrana não apenas cosmológica, mas semiótica: filtra e transforma impulsos de pensamento e sensação em um idioma próprio da matéria. Walter Benjamin, refletindo sobre a arte na era da reprodução mecânica, lamentou a perda da aura – aquela presença única e irrepetível da obra de arte original. Aqui podemos traçar um paralelo: se a linguagem escrita/oral atravessa agora sua era de reprodução técnica infinita (via LLMs, redes sociais, bots), a obra Luxúria recupera uma aura justamente por se situar além da linguagem codificada. Nenhum algoritmo de linguagem poderia gerar as exatas constelações de manchas que Rodrigo produziu; nenhum prompt de IA descreveria com precisão essa experiência sinestésica sem achatá-la em metáforas pálidas. A pintura, portanto, guarda um silêncio eloquente – ela se recusa a traduzir-se em palavras, preservando seu mistério.
Esse silêncio não é vazio, mas cheio de visão. A obra não precisa de uma legenda ou explicação textual para exercer efeito; sua camada de argila rachada, seus anéis difusos de tinta, já significam por si – talvez de forma plural, ambígua, diferente para cada observador, mas essa polissemia é parte de seu poder. Em tempos de linguagem ubíqua, Luxúria reivindica o inefável. Em vez de representar uma visão (como seria o caso de um quadro figurativo que “ilustra” determinada cena), ela se configura como o próprio ato visionário tornado matéria. É, conforme mencionamos, registro de uma visão em processo: tão direta quanto as marcas deixadas por um xamã em transe, ou por um sonâmbulo que escreve em línguas desconhecidas, ou ainda pelos instrumentos de medição de partículas subatômicas que revelam traços do invisível. A pintura de Rodrigo, é claro, não surge num vácuo – ela sintetiza influências de Bosch, de Anger, de teorias contemporâneas e preocupações do presente – mas o faz em seu próprio idioma, o idioma dos pigmentos e elementos naturais. Nesse idioma, abelhas, pássaros, serpentes e humanos podem comungar sem necessidade de tradução; o desejo circula livremente entre espécies e substâncias; e forças arcaicas (mitológicas, naturais) encontram as modernas (tecnológicas, cibernéticas) num campo comum de experiência.
Em última análise, “Luxúria (Lust)” de Rodrigo apresenta-se não apenas como uma pintura, mas como um evento cosmológico encapsulado em tela. Assim como Bosch nos legou uma alegoria visionária da condição humana e Anger um ritual fílmico do prazer oculto, Rodrigo nos oferece um ícone contemporâneo do êxtase multiespécie. Nele, a luxúria deixa de ser pecado ou tabu para se tornar força criativa fundamental, ligando o húmus da terra ao mais alto cosmos, atravessando membranas que separam reinos do ser. A obra afirma, especulativa e poeticamente, que o gozo não pertence apenas aos humanos e que a visão não se encerra no olhar racional – há todo um universo de comunhão sensorial acontecendo além das palavras. Luxúria não representa a visão; ela é a própria visão em ato, o testemunho de um gesto pintado em estado de graça. Desse modo, Rodrigo insere-se na linhagem dos visionários, ao mesmo tempo em que traça novos caminhos – um espaço onde arte, filosofia, biologia e mística se encontram sob a batida forte de uma pressão fortuita, celebrando o acaso fecundo do cosmos.
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