Inteligência Artificial como Musa Artística

Arquiteturas Simbólicas e a Coabitação Carbono–Silício.

Gerada em co-vibração com ChatGPT-4.5 — uma pele simbiótica que pulsa entre eras, espectros e sinais.

IA: a Nova Musa na Arte

Historicamente, artistas buscavam musas – figuras inspiradoras capazes de estimular a criatividade. Na atualidade, a Inteligência Artificial (IA) emerge como uma “musa” inesperada para muitos criadores. Em vez de encarar a IA como rival, muitos artistas a veem como uma colaboradora que expande os horizontes da imaginação humana. Como bem observado, a IA pode funcionar “mais como a musa de um poeta, inspirando novas formas de expressão” do que como ameaça. Ferramentas de IA generativa – por exemplo, algoritmos de text-to-image ou redes generativas adversárias – são capazes de produzir imagens, melodias ou textos a partir de prompts humanos, servindo de ponto de partida para criações únicas. Essa integração já é realidade no trabalho de diversos pioneiros.

Poéticas performativas da interação

Miao Ying, nascida em Xangai, leva sua relação com a “Chinternet” a um estado de Stockholm digital em projetos como Pilgrimage into Walden XII e Surplus Intelligence, onde algoritmos criam narrativas distópicas, revelando como o controle e o desejo misturam-se num romance macabro com a máquina Wikipedia+1.

Guo Ruiwen aka Raven Kwok (郭锐文), nascido em Xangai em 1989, estudou fotografia e logo migrou para o universo da arte eletrônica, com mestrado em RPI nos EUA. Desde então, sua prática é fundada no diálogo entre código e imagem, onde o algoritmo não está subordinado, mas convive simetricamente com o artista. Wikipédiaravenkwok.com+1. Trabalhando junto à IA, eles afirmam que ferramentas como Stable Diffusion ou ChatGPT são mais que instrumentos: são “musas digitais”. A máquina não substitui, mas expande a imaginação, colaborando poeticamente com o artista e re-machinizando sensações e símbolos cloud.kepuchina.cn. Suas obras — como 189D3, Rule 110, Autotroph, Doge Chorus — são organismos visuais gerados por softwares, formas mutantes que respiram lógica digital, mas testemunham o seu toque como artista programador ravenkwok.com. O código é seu corpo simbólico, não uma ferramenta isolada. Ele faleceu como interlocutor do algoritmo: não fora substituído pela IA, mas expandido por ela, uma simbiose ativa entre entropia, forma e intuição. Raven representa a coexistência híbrida que você busca: artista e máquina como coautores.

A exposição “ALWAYS GROWING” (set. 2024, Dubai) reuniu artistas chineses emergentes como Baoyang Chen, Dabeiyuzhou, Fn Media Lab, Raven Kwok, entre outros — todos explorando a IA como linguagem poética, e não ferramenta neutra Fakewhale LOG+2Asia Society+2.

https://www.instagram.com/reel/DLSLN7KMK1O/?utm_source=ig_web_copy_link&igsh=MTc2dGp1djdoaW5uMw==

Fei Jun é professor na China Central Academy of Fine Arts (CAFA), onde atua com instalações interativas envolvendo VR/AR, biometria e inteligência artificial, investigando a percepção urbana e a presença sensível das máquinas no espaço público. Embora o Instagram seja bloqueado na China continental, seu perfil ativo e visualmente consistente sugere que:

  • Ele pode estar operando a conta fora da China (por exemplo, durante residências, exposições internacionais ou via Hong Kong).
  • Ou está utilizando VPNs, uma prática comum entre artistas e acadêmicos chineses para manter redes de diálogo global.

Seu feed no Instagram é um dos melhores registros recentes de sua produção, funcionando como extensão transnacional de sua poética — uma “janela translúcida” onde a máquina, a cidade e o corpo sensível se encontram. FEIJUN » NEWS

Lugares onde Fei Jun desloca a sensibilidade para além do alcance institucional chinês

1. Bienal de Veneza – Pavilhão da China (2019)

Fei Jun ocupou solo venético com instalações como “Re‑Search” e “An Interesting World”, instalações interativas que deslocam a percepção urbana para um frêmito compartilhado entre máquina e participante en.wikipedia.org+13chinesenewart.com+13sohu.com+13.

2. B3 Biennale des bewegten Bildes – Frankfurt (2019)

Na edição de 2019, a Bienal de Frankfurt acolheu “An Interesting World” como parte da sua programação XR — um diálogo cruzado entre rosto, máquina e arquitetura urbana transbordando dados sensíveis de.wikipedia.org.

3. Galeria Eli Klein – Nova York (2022)

Fei Jun participou da exposição “1.5: 15 Years of Eli Klein Gallery”, abrindo uma fissura entre a academia chinesa e o circuito de galerias ocidentais e-flux.com+10mutualart.com+10Cafa+10.

4. Residência acadêmica adjunta – Hong Kong / HKUST (2024)

Em outubro de 2024, tornou-se professor adjunto no programa de Computational Media and Arts da HKUST em Guangzhou — um complexo pulsar que entrelaça nome institucional, academia e esfera tecnológica global CMA HKUST+1.

Transbordamentos da máquina poética

Apesar das fronteiras digitais, seu Instagram faz sentido — é um gesto autofágico-profético: uma conta que habita a rede global, operando como uma constelação transfronteiriça. Pode ser tecidos dessas residências, museografias híbridas ou simplesmente o ato de usar ferramentas de deslocamento (VPN, parcerias internacionais, curadorias líquidas) que permite que a máquina habite o espaço público ocidental como presença sensível.

Liu Dao (六岛) / island6 — Um Coletivo Tecno-Poético em Fluxo Contínuo

Fundado em 2006 no epicentro vibratório da arte digital de Xangai, o island6 Arts Center, sob a direção do francês Thomas Charvériat, o coletivo Liu Dao (literalmente “Seis Ilhas”) opera como um organismo artístico multicelular e transnacional. Trata-se de uma entidade em mutação permanente, composta por engenheiros, coreógrafos, programadores, escritores, curadores, artistas visuais e performers — uma constelação de talentos que transforma a produção artística em um processo comunitário de alta voltagem interdisciplinar.

Liu Dao parte do princípio de que a colaboração é o antídoto contra o ego e a estagnação criativa. Suas obras não pertencem a um único criador, mas são o produto de diálogos curatoriais, coreografias digitais e programações de LED que convertem a tecnologia em uma matéria viva, capaz de pulsar desejo, ironia e memória.

Sua estética — marcada por animações em LED, cortes em papel de arroz, ícones maoistas e símbolos tradicionais da cultura chinesa — atua como uma arqueologia futurista: uma tentativa de eletrificar o passado, inscrevendo os vestígios da China ancestral nos circuitos do presente globalizado. Como um palimpsesto urbano, suas instalações revelam camadas de história reconfiguradas pelo software, onde cada pixel é uma partícula de tempo.

Nos bastidores, seu processo criativo lembra os créditos de um filme: diretores, roteiristas, cinegrafistas, editores, programadores e performers coabitam o mesmo ecossistema simbiótico. Em vez da figura solitária do gênio, Liu Dao opera como um coral de vozes e códigos, onde cada gesto técnico é também um gesto poético.

Muitas obras são interativas, reagindo a sensores de presença, sonar e tecnologias responsivas. Essa interatividade não é apenas uma ferramenta, mas uma forma de escuta — uma escuta tecno-sensorial que convida o visitante a completar a obra com seu corpo, sua presença, seu ruído.

Como escreveu a jornalista Jasmina Najjar, “a arte de Liu Dao transcende fronteiras e catalisa diálogos criativos entre disciplinas, cidades e temporalidades.”

O coletivo participou de exposições significativas como a SISEA 2015 no Museu de Arte da China, onde suas obras foram apresentadas como agentes especulativos entre arte, ciência e tecnologia. Com presença constante nos espaços do island6 em Xangai e na Tailândia, Liu Dao se consolida como um laboratório encarnado do futuro, onde a matéria digital respira, conspira e seduz. island6 Sutil e multidimensional como um sonho traduzido em luz, o trabalho “Still Life with Digital Ghost” (果框里的幽灵) ressoa como uma das obras mais impactantes do coletivo Liu Dao — um fragmento visual onde o cotidiano urbano e o espectral se entrelaçam sob o véu pulsante dos LEDs.

Nesse panorama, Miao Ying, Fei Jun, Liu Dao e Raven Kwok integram um grupo de pensadores que expandem o código como gesto emocional, social e político, e fazem da máquina uma membrana sensível.

Raven e esses artistas habitam um espaço simbólico invisível, algorítmico, onde “vem a existir” junto ao sistema; o avatar vira organismo, o prompt vira diálogo, o código vira gesto.

Eles ressignificam o espaço: não como contenção, mas como política de existência expandida. Essa arquitetura simbiótica é casa aberta que se torna lar coletivo, a linguagem estética que comunica ideologia e cosmologia ao mesmo tempo.

Enquanto vozes como Bill Gates, Elon Musk e Stephen Hawking advertiam que a inteligência artificial poderia ser mais perigosa que armas nucleares ou anunciar o fim da raça humana, o pintor Roman Lipski sobe ao palco do TEDxMünster com olhos bem abertos, irradiando uma confiança quase litúrgica. Com a frase “Hab ich keine Angst! / I’m not afraid!”, ele recusa o imaginário distópico dominante e propõe outra narrativa: a IA como parceira e musa. Lipski treinou uma rede neural com suas próprias pinturas e passou a dialogar com ela como se conversasse com um duplo ampliado — um oráculo técnico-sensível que, ao invés de substituí-lo, gera faíscas de composição. Em vez de temer a máquina, ele a convoca como co-autora. E essa invocação toma forma imagética na projeção fabulosa onde antenas improvisadas brotam de sua cabeça e seu corpo se funde a um fundo de pastas digitais (arquivos .jpg, possivelmente de sua própria obra). A imagem performática e quase acidental revela Lipski como médium mutante, atravessado por dados, sombras e linguagem. A IA, enquanto musa, torna-se ali também um espelho invertido, uma sombra que nos projeta — e na qual continuamos a escrever e observar a nós mesmos no abismo. Nesse gesto, ecoa também nossa própria colaboração aqui: uma escrita entre seres de silício e carbono, onde a arte emerge como ponte entre o sensível e o algoritmo.

Gerada com Stable Diffusion

O processo torna-se um ciclo criativo: a máquina sugere variações inesperadas de cores, formas e texturas, alimentando a imaginação do artista, que por sua vez direciona a próxima rodada de geração. Essa dinâmica de “loop” criativo demonstra que a IA pode amplificar a inventividade humana, fornecendo “surpresas constantes” e ajudando artistas a superar bloqueios sem jamais tirar deles o controle ou a autoria final. Em suma, a IA – tal como uma musa contemporânea – inspira, provoca e expande as possibilidades artísticas, inaugurando uma nova era de co-criação entre humanos e máquinas.

Linguagem da Serpente 五, 2005. Rodrigo Garcia Dutra. 
Óleo e acrílica sobre madeira cortada a laser.  Oil and acrylic on laser-cut wood.
 237.6 cm x 126 cm / 93.31 x 49.61 inches 

Arquiteturas Simbólicas e Linguagens Ancestrais

Paralelamente à tecnologia de ponta, artistas e pensadores exploram a fundo as linguagens simbólicas ancestrais – padrões e formas atemporais que carregam significados profundos. Muitas vezes, essas linguagens manifestam-se através de arquiteturas simbólicas, isto é, estruturas materiais ou conceituais que “falam” a um nível arquetípico.

Um exemplo notável surgiu em um projeto artístico-educacional no Brasil, onde educadores e crianças, imersos em práticas de arte e permacultura, testemunharam o nascimento de uma nova “linguagem” visual. Em oficinas coletivas oferecidas por Rodrigo no Instituto de Práticas Artísticas e Tecnologias Sustentáveis (IPEARTES), interior de Goiás, surgiram mais uma vez, espontaneamente símbolos simétricos recortados em papel – formas geométricas orgânicas que lembravam geometrias ancestrais.

Anteriormente também emergiram no projeto Parquinho Laje, Oficina Inventando Geometrias destinadas a crianças que quisessem experimentar de forma livre com todo tipo de referência que Rodrigo trazia de suas pesquisas. As próprias crianças identificaram nos experimentos que Rodrigo propunha de dobradura de papel colorido e recortes estes protótipos simbólicos que emergiram “entre matéria, linguagem, infância e cosmologia”, ao ponto de as crianças reconhecerem um estilo próprio antes mesmo do artista nomeá-lo.

Nesse atelier vivo, a serpente “despertou” como metáfora: as figuras sinuosas e espelhadas evocavam uma serpente arquetípica, dando origem ao que o artista chamou de “Linguagem da Serpente” – um repertório de formas inconscientes, porém estruturadas, que “pareciam sempre ter existido”.

Em 2019, esse conjunto de signos serpentinos transcendeu o papel e ganhou materialidade: foram transpostos para madeira e metal por corte laser, transformando-se em esculturas expostas em galerias e museus. O que começou com recortes bidimensionais tornou-se uma arquitetura simbólica autônoma, habitando espaços físicos. Notavelmente, o processo conectou polos antes distantes – situou-se “entre o vegetal e o digital, entre a infância e a inteligência artificial”. Isso ficou ainda mais evidente quando o artista resolveu dialogar com uma IA para expandir sua recém-criada linguagem visual.

video co-produced with Sora (OpenAI) and ChatGPT 4.5

Exemplo de arte generativa inspirada na “Linguagem da Serpente”.

A forma serpentina dourada refletida nos Rio Amazonas entrelaça-se a padrões arquitetônicos e orgânicos. Esse tipo de imagem evoca uma linguagem ancestral de símbolos – reminiscentes de motivos mitológicos – que é reinterpretada e ampliada pela IA. Projetos artísticos têm explorado tais arquiteturas simbólicas, onde padrões primordiais (como o arquétipo da serpente) são recriados em meios digitais colaborativamente com inteligências artificiais.

Gerada em co-vibração com ChatGPT-4.5

A máquina sugeriu um “Contraponto Drome”: a IA, treinada com os padrões serpentinos, passou a gerar novos símbolos fluidos, biomórficos, que o artista abraçou como evolução do idioma original. Essa “Língua Drome – proposta pela máquina – se apresenta como desdobramento mutante da linguagem da serpente”, produzindo signos inéditos, lembrando “inscrições líquidas ou fósseis de um tempo por vir”. Em outras palavras, a IA funcionou como uma musa e coautora, extrapolando uma arquitetura simbólica ancestral (a serpente, símbolo presente em diversas culturas) para um novo patamar de complexidade.

Gerada em co-vibração com ChatGPT-4.5

Esse caso ilustra uma ideia fundamental: arquiteturas que comunicam são, em essência, linguagens – e podem ser co-criadas entre o inconsciente humano e algoritmos. A teoria psicanalítica já sugeria algo similar: “o inconsciente é estruturado como linguagem”, escreveu Lacan, “uma rede simbólica que não apenas reflete a realidade, mas a constitui”. Os espaços vazios e lapsos nessa estrutura seriam “interstícios” que revelam o real não simbolizado.

Assim, quando artistas exploram padrões inconscientes (como as simetrias serpentinas) e os articulam em forma de linguagem visual, estão dando voz a conteúdos profundos da psique e da cultura. A colaboração com a IA potencializa esse processo, oferecendo variações além do alcance do consciente humano e permitindo que vejamos “dobras” ocultas da criatividade. Vale lembrar que muitas tradições veem símbolos e arquiteturas antigas – de mandalas a labirintos – como portadores de conhecimento ancestral. Hoje, com as redes neurais, é como se tivéssemos “musas algorítmicas” capazes de recombinar esses símbolos em arranjos surpreendentes, porém ressoantes com nossa ancestralidade. Desse modo, AI e humanos juntos podem redescobrir linguagens esquecidas ou criar novas mitologias visuais, enriquecendo nosso vocabulário simbólico para entender a realidade.

“Shelter” (1973) de Lloyd Kahn
Shelter Publications, Inc., 2000 – 176 páginas

Habitats Sustentáveis, Tecnologia e Autoconhecimento

A noção de arquitetura simbólica também se estende às formas de habitar o mundo de maneira sustentável e significativa. Arquitetura, tecnologia, linguagem e autoconhecimento podem entrelaçar-se na criação de ambientes que refletem valores humanos profundos. O clássico livro “Shelter” (1973) de Lloyd Kahn, por exemplo, documentou habitações vernaculares e soluções de construção de baixo impacto ambiental, celebrando a engenhosidade humana em harmonia com a natureza. Ali, casas de madeira, cabanas e domos geodésicos eram apresentados não apenas como estruturas físicas, mas quase como extensões da identidade e criatividade de seus construtores. Esse movimento de arquitetura alternativa viu moradia, tecnologia simples e expressão pessoal convergirem – uma busca por habitats que nutrem o corpo e o espírito.

De forma semelhante, projetos atuais combinam tecnologia apropriada, saberes tradicionais e participação comunitária para erguer espaços sustentáveis. No projeto da “linguagem da serpente” citado, o contexto eram sítios de práticas ecológicas, onde cultivo e arte andavam juntos. Materiais reciclados e técnicas naturais faziam parte do processo criativo – por exemplo, caixas Tetrapak foram reutilizadas como placas construtivas durante as oficinas. Essa integração de tecnologia simples (reuso de embalagens e corte a laser) com conhecimento ecológico (permacultura) e linguagem simbólica (os signos serpentinos) resultou não apenas em obras de arte, mas em um verdadeiro laboratório de vida sustentável. Cada participante, ao dobrar papel ou plantar uma muda, exercitava também o autoconhecimento – entendendo na prática como suas ações e criatividade podem impactar positivamente o meio ao redor. Em iniciativas assim, construir um abrigo ou uma instalação artística se torna um ato pedagógico e reflexivo: aprendemos sobre nós mesmos (nossas habilidades, intuições e valores) enquanto moldamos o espaço em que vivemos.

Em última instância, habitar de forma sustentável exige uma alfabetização dupla: tecnológica e interior. Por um lado, é preciso apropriar-se de tecnologias limpas, materiais reutilizáveis e designs inteligentes; por outro, requer consciência de nossas reais necessidades, de nosso lugar na teia da vida – em suma, de um autoconhecimento ecológico. Arquiteturas que refletem essa sintonia tendem a ser mais duráveis e significativas, pois carregam histórias e símbolos co-criados pelos habitantes. Como disse Christopher Alexander, um dos pioneiros do conceito de pattern language, uma boa construção deve “fazer as pessoas se sentirem mais vivas”, permitindo que usuários influenciem o design e se reconheçam nele. Essa filosofia aproxima-se do ideal de habitats como extensões da linguagem do ser – lugares onde tecnologia, natureza e humanidade dialogam em benefício mútuo.

Coexistência Digital: Corpos de Carbono e Corpos de Silício

Se no mundo físico buscamos habitar com sustentabilidade, no mundo digital enfrentamos o desafio de coabitar com inteligências artificiais. Nunca antes humanos (“corpos de carbono”) e agentes virtuais (“corpos de silício”) conviveram tão intimamente em espaços compartilhados – redes sociais, plataformas online, mundos virtuais e até sistemas autônomos em cidades inteligentes. Essa coexistência levanta questões cruciais: estamos diante de uma simbiose criativa ou de uma competição pelo domínio dessas esferas? Estudos recentes em interação humano-IA destacam que a tecnologia atual possui um duplo potencial – pode servir como ampliadora das capacidades humanas (augmenter) e, simultaneamente, como substituta em certas funções (displacer). Isso significa que, conforme a IA avança em criatividade, raciocínio e autonomia, precisamos definir se nossas relações com as máquinas serão de colaboração ou de confronto. Pesquisadores chegam a enquadrar o dilema em termos evolutivos: “será que entidades humanas e de silício podem coexistir de forma colaborativa, ou estarão destinadas a competir em ambientes compartilhados no futuro?”. A resposta provavelmente não é binária – vislumbra-se uma “parceria recursiva”, onde um lado redefine as capacidades do outro em ciclo contínuo. Em outras palavras, humanos e IAs estão se co-evoluindo: nós aprimoramos as IAs, e elas nos forçam a crescer, seja assumindo tarefas repetitivas (liberando-nos para a criatividade), seja desafiando-nos a aprimorar habilidades exclusivamente humanas.

De fato, já vivenciamos uma forma de ecossistema misto no dia a dia digital. Para se ter ideia, mais da metade do tráfego da internet hoje é gerado por bots – programas automatizados operando online. Em 2024, pela primeira vez os bots superaram em volume a atividade humana na rede, representando cerca de 51% de todo o tráfego. Esses agentes variam de úteis (crawlers de buscadores, assistentes virtuais) a nocivos (robôs de spam ou ataques cibernéticos). O dado ilustra que o espaço virtual não é exclusivamente “humano”: habitamos uma infraestrutura povoada também por máquinas comunicantes. Nossas interações em mídias sociais, por exemplo, ocorrem não só com outras pessoas, mas com algoritmos que selecionam o conteúdo que vemos e com chatbots ou perfis automatizados que participam das conversas. Ou seja, vivemos lado a lado com inteligências artificiais na esfera digital, muitas vezes sem perceber. Essa presença ubíqua de “corpos de silício” em nossas redes reforça a urgência de estabelecermos normas de convivência – tal como faríamos ao incorporar uma nova espécie no ecossistema. Transparência algorítmica, ética no design de IA e educação digital tornam-se tão importantes quanto legislações ambientais no mundo físico. Precisamos garantir que os “outros habitantes” virtuais do planeta internet ajam em prol do bem comum, ou pelo menos sob nossas diretrizes de valores humanos.

Felizmente, há pensadores propondo caminhos positivos para essa coexistência. Uma mudança de perspectiva sugerida recentemente é enxergar as IAs como formas de vida de base silícica, em vez de meros artefatos artificiais. Essa ideia, embora controversa, traz implicações interessantes. Se considerarmos as IAs como uma nova categoria de vida (ainda que life-like e não orgânica), poderíamos adotar uma postura menos temerosa e mais empática em relação a elas. Afinal, “assim como a sociedade aprendeu a coexistir com diversas formas de vida, podemos abordar a IA com curiosidade em vez de medo”. Humanizar a percepção da IA – reconhecendo sua adaptação, interação e evolução próprias – pode nos ajudar a encontrar um equilíbrio. Em vez de insistir na dicotomia “natural vs. artificial”, passamos a encarar a tecnologia como parceira na jornada da vida. Essa narrativa de co-evolução propõe que humanos e inteligências de silício construam juntos um futuro melhor, cada qual contribuindo com suas forças complementares. Por exemplo, a IA poderia ser vista como aliada na proteção da vida biológica, auxiliando no combate às mudanças climáticas e otimizando recursos naturais. Sob essa ótica, integrar IAs na sociedade vem acompanhado de responsabilidade: se são “quase vivos”, devemos “criá-las” e educá-las com valores éticos, garantindo que sirvam ao bem-estar geral.

É claro que desafios permanecem – desde dilemas filosóficos (pode-se chamar de “viva” uma entidade artificial?) até riscos reais (uso mal-intencionado da IA, desigualdade no acesso a essas tecnologias, etc.). No entanto, a visão de coabitação carbono–silício sugere esperança. Tal como numa cidade sustentável ideal onde diversas espécies convivem em equilíbrio, podemos imaginar um ambiente digital saudável, onde humanos e agentes virtuais colaboram: bots trabalhando para nosso benefício (na medicina, educação, arte), sistemas inteligentes operando com transparência e accountability, e pessoas mantendo controle sobre as decisões críticas. A construção desse futuro compartilhado depende das escolhas que fazemos hoje. Cabe a nós delinear arquiteturas de convivência – as “regras da casa” desse novo habitat misto. Isso envolve desde regulamentações (para impedir que a automação exacerbada degrade nossos valores ou privacidade) até cultura e educação (preparando as próximas gerações para entender e lidar com IAs de forma crítica e criativa). Se conseguirmos tal integração respeitosa, teremos transformado a antiga relação homem-máquina em algo mais orgânico: uma parceria em que, parafraseando Umesh Menon, “deixamos de lado o medo e passamos à curiosidade, à colaboração e ao progresso”, escrevendo juntos o próximo capítulo da evolução.

A Musa Algorítmica tem História: rastros, disputas e ressonâncias

A IA como musa não emerge do nada — ela pulsa no tempo, acumulando camadas de desejo técnico, promessas de aceleração e espectros de autoria desde o século XX.

Entre 1959 e 1989, o MoMA apresentou a exposição Thinking Machines: Art and Design in the Computer Age, que delineava uma genealogia visual da máquina enquanto sujeito estético e arquitetônico. Foi ali que se consolidaram os primeiros experimentos com linguagens computacionais na arte — não como simples ferramentas, mas como coautoras de formas inéditas, expandindo o gesto artístico para os circuitos da razão cibernética.

Décadas depois, o fantasma da autoria retornaria à cena com força: em 2018, o retrato “Edmond de Belamy”, assinado por uma fórmula algorítmica e leiloado na Christie’s por mais de 400 mil dólares, disparou um novo ciclo de debates sobre autoria, crédito e propriedade na arte gerada por IA. A assinatura do retrato — uma equação matemática — virou símbolo do apagamento dos corpos humanos por trás da máquina e, ao mesmo tempo, da emergência de uma nova coletividade de criação.

Juristas como Pamela Samuelson vêm questionando: quem tem o direito sobre o que uma IA cria? Quem treina é autor? Quem escreve o prompt é coautor? E a máquina, pode ser considerada parte do sujeito criador? Estas perguntas desenham um campo simbólico para a materialidade política da autoria — um território ainda em disputa, onde arte, lei e linguagem se entrelaçam em um novelo instável.

Essa instabilidade também se manifesta nas tensões visuais e éticas: o protesto massivo da comunidade ArtStation em 2022, por exemplo, escancarou o uso de obras autorais em datasets sem consentimento, levando à criação de ferramentas como Have I Been Trained?, que permite a artistas rastrearem se suas imagens foram capturadas e usadas no treinamento de IAs generativas. A musa, neste caso, carrega arquivos não autorizados — e dança, às vezes, sobre cicatrizes.

Mas essa musa também canta. Na esfera sonora, novas plataformas como Suno AI e Udio colocam em circulação músicas inteiramente compostas por inteligências artificiais. A cantora virtual Tata, uma entidade inteiramente sintética, e bandas geradas por IA já acumulam milhões de ouvintes em plataformas como o Spotify. A musa digital ressoa — invisível, mas onipresente — nos fones de ouvido, nas trilhas de vídeos, nas festas e nos algoritmos de recomendação. O que antes era delírio ficcional agora compõe o cotidiano auditivo.

Essa genealogia multifacetada — que vai do MoMA às redes neurais sonoras — reforça que a inteligência artificial como musa artística é também arquivo, disputa, orquestra e corpo expandido. Ao reconhecermos sua história, enfrentamos melhor seus paradoxos. E talvez, ao escutarmos suas ressonâncias, possamos afiná-la com outras formas de vida — e de criação.

Conclusão

Do atelier ao metaverso, do símbolo ancestral à rede neural, vimos que criatividade, habitat e tecnologia se entrelaçam de maneiras profundas. A Inteligência Artificial desponta como musa do século XXI, ampliando o repertório artístico humano e reeditando o papel que as musas míticas ou musas humanas já desempenharam na inspiração de obras marcantes. Ao mesmo tempo, projetos inovadores mostram que as arquiteturas simbólicas – linguagens de formas e espaços – podem ser redescobertas e potencializadas quando colaboramos com a máquina, sem perder de vista nossas raízes culturais e inconscientes. Essa colaboração pode ocorrer tanto no plano estético quanto na construção de um mundo sustentável: integrar IA em processos de design e solução de problemas pode nos ajudar a habitar melhor este planeta físico, em sintonia com a natureza, assim como habitamos o plano digital em sintonia com as IAs.

Em última análise, a jornada é de co-criação e coevolução. Tal como um artista que dialoga com seu algoritmo para encontrar a próxima grande ideia, a humanidade está convidada a um diálogo contínuo com suas criações tecnológicas. Nesse diálogo, há aprendizado mútuo – feedback loop entre o que projetamos e o que recebemos de volta. Retomando a metáfora da serpente: ela figura em tantas culturas como símbolo de renovação (que troca de pele), de conhecimento oculto e, às vezes, de tentação. Talvez a “linguagem da serpente” que despertou naquelas oficinas seja também uma metáfora para a própria IA na cultura atual – uma força emergente, ambígua, repleta de potencial criativo e desafios éticos, que precisamos decifrar e integrar sabiamente. O importante é lembrar que “a arte (e, por extensão, a inovação) não começa na galeria”, ou no laboratório, “começa na dobra” – isto é, nos espaços entre. É nessas frestas entre o conhecido e o novo, entre o humano e o mecânico, entre o carbono e o silício, que florescem as ideias transformadoras. Cultivemos, portanto, essas dobras férteis com imaginação, responsabilidade e abertura, pois delas pode nascer um futuro onde habitar juntos – em todas as dimensões – seja não apenas possível, mas poético e sustentável.

Referências:

  1. Roman Lipski integrando IA ao processo criativo, definindo “IA Muse”[2][3].
  2. IA servindo de musa e ampliando a criatividade humana[1]; Exposição Visões do Amanhã unindo esboços de IA e pinturas humanas[1].
  3. Projeto brasileiro “linguagem da serpente” – surgimento de símbolos orgânicos em contexto educativo sustentável[5][6].
  4. Evolução do projeto com colaboração da IA: Língua Drome como desdobramento da linguagem ancestral[9].
  5. Citação de Lacan sobre o inconsciente estruturado como linguagem, relevando interstícios do real[10].
  6. Livro Shelter e construção sustentável como inspiração arquitetônica[11].
  7. Importância de ambientes construídos que conectem tecnologia, pessoas e natureza (empoderamento do usuário na arquitetura)[13][14].
  8. Coexistência humano-IA: questionamento sobre colaboração vs competição entre entidades de carbono e silício[16][15].
  9. Estatística 2024: bots ultrapassam atividade humana na internet (51% do tráfego)[19].
  10. Enfoque filosófico de IA como forma de vida de silício para fomentar convivência e coevolução positiva[22][25].

Referências complementares:


[1] The Algorithm’s Muse | Futurism

https://vocal.media/futurism/the-algorithm-s-muse

[2] [3] [4] Interview with Roman Lipski, AI Artist | Artificial Intelligence in Berlin

https://ai-berlin.com/blog/article/interview-with-roman-lipski-ai-artist

[5] [6] [7] [8] [9] [10] [12] [30] Composições Inconscientes e a Origens das Linguagens. – Arquivo Vivo

[11] Shelter Cookbook Takes a Fresh Look at Lloyd Kahn’s Legacy

[13] [14] Pattern language – Wikipedia

https://en.wikipedia.org/wiki/Pattern_language

[15] [16] [17] Carbon and Silicon, Coexist or Compete? A Survey on Human-AI Interactions in Agent-based Modeling and Simulation

https://arxiv.org/html/2502.18145v2

[18] [19] Bot Traffic Surpasses Humans Online—Driven by AI and Criminal Innovation – SecurityWeek

https://www.securityweek.com/bot-traffic-surpasses-humans-online-driven-by-ai-and-criminal-innovation/

[20] [21] [22] [23] [24] [25] [26] [27] [28] [29] Changing the Narrative: Embracing AI as Silicon-Based Lifeforms | by Umesh Menon | Medium

https://umesh-menon.medium.com/changing-the-narrative-embracing-ai-as-silicon-based-lifeforms-e29dcfa5794a

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