Genealogia do Nu e do Erotismo

Despir-se em público é um ato carregado de camadas históricas e filosóficas. Na Grécia Antiga, a nudez masculina nos ginásios celebrava o ideal do corpo divino; já a moral judaico-cristã medieval revestiu a carne de pecado e pudor, enclausurando o nu em tabu e vergonha. Cada época produz seu regime de visibilidade do corpo. Michel Foucault notou como, a partir do século XVII, as sociedades ocidentais inauguraram mecanismos disciplinares que fabricam corpos dóceis para servirem à ordem produtiva [1]. A nudez pública —por não servir à produtividade e desafiar o decoro— tornou-se indecente, exceto em espaços isolados (o banheiro, o bordel, o manicômio). O biopoder moderno, nas palavras de Foucault, regula populações “fazendo viver e deixando morrer”[2], incluindo normatizar a sexualidade e o exibicionismo corporal. Com o advento do naturismo moderno, porém, vemos uma contra-corrente: o movimento Freikörperkultur (FKK) na Alemanha, desde o fim do século XIX, propôs um “retorno à natureza” pela nudez social não-erotizada. A cultura do corpo livre deserotizou o corpo nu, advogando que a nudez em si não é sexualmente provocativa – é a civilização que nos ensinou a vê-la assim[3]. Essa perspectiva revolucionária (e utópica) entendia a nudez coletiva como higiene, liberdade e igualdade: homens, mulheres e crianças nus, compartilhando praias e parques sem a mediação da vergonha, como parte integrante do meio ambiente. Sob esse prisma, o nu retorna a um estado cosmológico, isto é, inserido na ordem natural do cosmos, livre da pecha de “obsceno”.

Entretanto, o erotismo não deixa de estar presente, ainda que transfigurado. Se o naturismo busca dessexualizar o nu para revelar sua pureza social, pensadores como Georges Bataille encaram o erotismo justamente como a força transgressora que nasce da proibição. Bataille definiu o erotismo como “uma afirmação da vida, até mesmo na morte”[4], uma energia criativa que brota do atrito entre o interdito e sua transgressão. Diferente da mera sexualidade animal, o erotismo humano habita o domínio do tabu e de sua ultrapassagem[5]. Ao despir-se em local público (mesmo autorizado), o artista performa uma leve transgressão ritual: há regras e códigos no ambiente naturista, mas sua nudez voluntária reativa, em escala mínima, aquela dinâmica descrita por Bataille – o desejo flui precisamente onde havia um limite. O corpo nu em Abricó está simultaneamente des-erotizado (pois partilha de um contexto comunitário sem conotação sexual direta) e re-erotizado pelo olhar artístico que o insere numa genealogia de performances corporais e queer. Aqui, Judith Butler seria lembrada: gênero e decoro são performances reguladas, e o gesto de desnudar-se em público (ainda mais um homem gay ou pessoa queer) adquire contornos de performance insurgente, desafiando a norma heteronormativa que dita quais corpos “podem” se mostrar e quais devem permanecer velados. Em outras palavras, o ato subverte a ideia de que o prazer e a exposição do corpo são vulgares ou profanos; em vez disso, reivindica o corpo nu como texto filosófico vivo, aberto a novas leituras.

Biopoder Digital e Algoritmos Moralizantes

Se outrora a disciplina operava nas escolas, quartéis e prisões para controlar os corpos, hoje ela se estende às plataformas digitais. Numa era em que a existência se mede em visibilidade online, algoritmos moralizantes tornaram-se os novos guardiões do pudor público. Em redes sociais como Instagram e Facebook, sofisticadas IAs foram treinadas para detectar “partes do corpo perigosas” – fêmeas mamilos, nádegas, genitais – e censurá-las sumariamente[6]. O resultado é uma verdadeira censura algorítmica do nu: fotos artísticas ou documentais são removidas se exibem um seio feminino, enquanto representações similares de torsos masculinos permanecem impunes[7]. Essa moral automatizada carrega vieses de gênero e sexualidade: uma investigação jornalística revelou que a inteligência artificial classifica imagens de corpos femininos como mais sexualmente sugestivas do que as de homens[8]. O puritanismo inscrito no código reflete e reforça velhos padrões patriarcais – aquilo que Butler identificaria como o “olhar normativo” reencarnado em linha de código.

As consequências para artistas e dissidentes corporais são severas. Nos últimos anos, multiplicaram-se os casos de fotógrafas, performers e militantes tendo suas contas excluídas ou shadowbanned por postar trabalhos de nudez ou erotismo não-pornográfico[9]. A plataforma raramente distingue o contexto: um mamilo exposto por protesto político ou por expressão artística recebe o mesmo veto que conteúdo pornográfico explícito. Conforme denunciou a artista Emma Shapiro, cujo Instagram profissional foi empurrado para a sombra, “Sexo não é o tema da minha arte; eu só uso um corpo nu. Sempre me senti muito ofendida por meu corpo ser sexualizado sem minha intenção”[10]. Essa frase contundente expõe o núcleo do problema: o algoritmo (treinado nas sensibilidades do mercado) sexualiza unilateralmente o corpo nu, ignorando a intenção e o contexto. A máquina lê a pele descoberta como perigo moral, transformando em “vulgaridade” aquilo que, na visão do artista, era prazer cosmológico ou crítica cultural.

Podemos interpretar essa vigilância digital como uma extensão difusa do biopoder foucaultiano: um Panóptico global que esquadrinha selfies e frames de vídeo em busca de desvios da norma comunitária. A disciplina agora atua no nível dos píxeis e hashtags, “fabricando” um sujeito dócil digital que auto-censura seu corpo antes que o algoritmo o puna. Este panorama justifica a provocação do filósofo trans Paul B. Preciado ao dizer que vivemos num regime farmacopornográfico: de um lado, a indústria farmacêutica controla quimicamente os corpos; de outro, a indústria pornográfica (e anti-pornográfica) define o que pode ou não pode ser visto. Sob tal regime, prazer e imagens são mercadorias vigiadas de perto. Entretanto, como Preciado argumenta, “o melhor antídoto contra a pornografia dominante não é a censura, mas antes a produção de representações alternativas da sexualidade, feitas a partir de olhares divergentes do olhar normativo”[11]. Ou seja, a resposta não está em calar o desejo visual, mas em hackeá-lo simbolicamente – criar novas estéticas corporais, novos imaginários eróticos, capazes de driblar e desafiar a normativa vigente.

Arte como Hackeamento Simbólico

Frente à poda automatizada dos sentidos, artistas e ativistas têm respondido com astúcia e ironia, transformando a censura em matéria-prima criativa. Um exemplo marcante é a campanha “Don’t Delete Art” (Não Exclua Arte), que expõe os paradoxos das políticas do Instagram. A fotógrafa Savannah Spirit, após ver uma série de autorretratos de pin-up ser deletada, desenvolveu uma estratégia estética para enganar o algoritmo: passou a cobrir seu corpo nu com as sombras filtradas de persianas e rendas, criando um véu de luz e trevas sobre a pele[12]. Essas imagens, ainda que explicitamente nuas, confundem a visão computacional – as listras e padrões induzem a IA ao erro, fazendo-a “perder” a nudez que tanto procura censurar. Spirit relata que essa tática de camuflagem erótica não apenas burlou a censura, mas adicionou uma camada conceitual nova ao seu trabalho, tornando-o “melhor” em certo sentido[12]. Eis o hackeamento simbólico: a artista subverte os filtros morais do sistema usando as próprias regras deste como elemento estético. Do mesmo modo, o artista Spencer Tunick – célebre por fotografar multidões nuas em espaços urbanos – viu sua conta banida, mas segue orquestrando seus happenings em escala global, difundindo as imagens por canais alternativos. A mensagem é clara: o desejo de tornar visível o corpo comum (nu, imperfeito, livre) é mais inventivo que os códigos que tentam suprimi-lo.

Outras ações performáticas lidam com a censura de forma lúdica. Em 2014, a artista Micol Hebron criou o adesivo digital do “Mamilo Masculino” – basicamente, recortes de mamilos de homem branco, disponibilizados para que qualquer pessoa cobrisse os mamilos femininos em suas fotos e, assim, escapasse do banimento automático[13]. A piada séria de Hebron evidenciava o absurdo da regra sexista: se o mamilo do homem é permitido, então basta colá-lo sobre o da mulher para “purificar” a imagem. Já Emma Shapiro lançou a “Exposure Therapy” (Terapia da Exposição) em 2017, distribuindo adesivos físicos com fotos de mamilos femininos para serem colados pelo mundo – em postes, lixeiras, praias – acompanhados de outro adesivo declarando “Nudez não é pornografia”[13]. Esses gestos guerrilheiros espalham pelo espaço urbano aquilo que o espaço virtual suprime, reivindicando o direito à representação do corpo sem imediata sexualização ou vergonha. Temos aqui ecos diretos do movimento FKK de um século atrás: os stickers “Nudez≠Porn” colados em lugares públicos retomam a noção de que o corpo nu pode existir fora do circuito pornográfico e do olhar objetificante. É a arte performativa ocupando o lugar de uma pedagogia do olhar – ensinando, pela via do humor e do escândalo, que há diferentes formas de ver um nu.

A tecnologia em si também pode ser apropriada de forma criativa. Algoritmos “moralizantes” podem ser re-hackeados para fins subversivos, numa espécie de xamanismo digital. Já existem projetos de arte queer em realidade aumentada que inserem virtualmente genitálias e mamilos invisíveis sobre esculturas clássicas em museus (uma vingança fantasmagórica contra as folhas de parra adicionadas em séculos passados). Outros artistas trabalham com glitch, distorcendo imagens censuradas até virarem padrões abstratos – belos e indecifráveis para as IAs censoras. Essas práticas trafegam no limiar do admissível, expandindo as brechas do sistema. Como disse Donna Haraway, precisamos “habitar as fronteiras” de modo criativo: em seu Manifesto Ciborgue, Haraway propõe figuras híbridas e ironias para rachar dicotomias opressivas. Aqui, podemos imaginar o ciborgue naturista – metade corpo orgânico em comunhão com a terra, metade presença digital navegando os filtros da rede. O artista nu na praia, documentado por câmeras e difundido online, torna-se um ser liminar: seu corpo é real e terreno (cobre-se de areia, dialoga com os galhos-nus ao redor), mas também é dado algorítmico, arriscando-se a ser detectado e deletado. Ao assumir essa posição, ele atua como hacker simbólico da máquina social: testa os limites do permitido e, ao fazê-lo, expõe a ideologia por trás do algoritmo. Afinal, como observou a teórica Donna Haraway, “as fronteiras estão muito acima ou muito abaixo da corrente de domínio”, e é nelas que se pode tecer novas tramas – no caso, tramas de liberdade sensorial.

Prazer Cosmológico versus Vulgaridade

No cerne dessa discussão está a luta pela ressignificação do prazer. Historicamente, regimes autoritários – da Inquisição religiosa aos filtros do Instagram – rotulam certas expressões de prazer (sobretudo as ligadas ao corpo e à sexualidade não-reprodutiva) como vulgares, baixas, indignas da esfera pública. Tal rotulagem serve a uma política do medo: separa o cosmo (a ordem, o elevado) do caos (o carnal, o dionisíaco), como se prazer e espiritualidade fossem incompatíveis. O projeto poético-crítico do artista na Praia do Abricó vai na contramão: ele reivindica o prazer sensorial – de estar nu ao sol, de sentir-se uno com a brisa e a água salgada – como um gesto cosmológico. Ou seja, como parte da ordem do universo, tão legítimo e necessário quanto o ato de respirar ou contemplar as estrelas. Essa reintegração ecoa tradições antigas e saberes marginalizados. Culturas pagãs veneravam o êxtase sexual como portal para o divino; místicas tântricas viam a união erótica como microcosmo da criação cósmica. Até mesmo nas teorias de Bataille, o auge erótico roça a experiência do sagrado, porque no orgasmo (a “pequena morte”) o ser rompe sua individualidade e comunga com algo maior, inaudito.

No contexto contemporâneo, Paul B. Preciado e pensadores pós-pornô sustentam ideia similar: para desarmar o poder normativo, é preciso cosmologizar o prazer, tirá-lo do gueto da pornografia mercadológica e espalhá-lo pela vida comum, pelas linguagens da arte, da intimidade e do convívio. Isso implica afirmar que ver um corpo nu, ou gozar, ou apreciar a beleza erótica, não é em si indecente – pode, ao contrário, ser luminoso e esclarecedor. “Reinscrever o prazer como gesto cosmológico” significa devolvê-lo ao circuito das energias vitais do mundo, tratá-lo como conhecimento incorporado. Em um ensaio de 1979, Michel Foucault já apontava que o desafio era escapar da dupla armadilha da repressão e do discurso cientificista sobre o sexo, para inventar “novas formas de prazer” e liberdade. As lutas queer e feministas têm feito exatamente isso: do orgulho LGBTQ+ (que transforma a vergonha em celebração pública) às práticas de sexo dissidente e às estéticas camp, o que era tachado de sujo ou risível pode ganhar status de arte, de política, de rito. Judith Butler escreveu sobre a potência das alianças corporais em protesto – corpos juntos nas ruas, às vezes semi-nus ou travestidos, encenando coreografias de resistência. Essas alianças performativas demonstram que o corpo importa (bodies that matter), e que a vulnerabilidade compartilhada é fonte de poder. No ato de se expor nu em Abricó, sabendo que tal imagem talvez não possa “viver” no Instagram sem retaliação, o artista encarna essa vulnerabilidade poderosa. Ele se faz oferta: tal como os galhos-nus viraram abrigo poético, seu corpo-nu vira manifesto silencioso.

Podemos ler a Proposição 16 então como um haikai encarnado. Os galhos secos, recolhidos do mar e montados como abrigo, rimam com a figura humana solitária despida entre as pedras. Ambos são restos e promessas: matéria bruta e desejo vivo. A performance sugere que natureza e desejo se refletem mutuamente, apontando para uma visão de mundo não fragmentada. O prazer aqui não é vulgaridade a ser censurada, mas sim uma espécie de cola cósmica conectando elementos díspares – humano e não-humano, online e offline, passado e futuro. Diante do mar e sob o céu aberto, o artista se reconecta a uma ordem maior que escapa à gramática puritana dos algoritmos. Ele inscreve seu prazer (de existir sem peias, de desafiar a vigilância) no grande poema da natureza, como um fogo branco sobre o cérebro, ardendo porém não consumindo, iluminando novas possibilidades de ser.

Em última instância, o texto crítico-teórico-poético diante de nós é também um ato de resistência cosmológica. Faz uso de citações e conceitos (Bataille, Foucault, Haraway, Butler, Preciado) da mesma forma que o artista usa galhos e a própria carne: para construir abrigos temporários de sentido sobre as rochas escorregadias da contemporaneidade. É um abrigo feito de palavras nuas, que busca proteger – ainda que por um instante – a chama do prazer livre, para que ela não se apague sob os ventos frios da censura digital. Cada referência aqui costurada é uma viga nesse abrigo: Bataille trazendo o elemento transgressão-criação; Foucault, a estrutura de poder que precisamos driblar; Butler e Preciado, as estratégias de reexistência queer; Haraway, a visão de um futuro onde possamos ser ciborgues sensuais, em harmonia com todas as nossas partes. E logo ali ao lado, silenciosamente, os galhos-nus observam. O mar continua a recitar seus haikais nas ondas. A luta continua, em cada upload e em cada manhã de sol: não deletar a arte, não interditar o êxtase. Pois, como pregava um adesivo colado num poste de Nova York: Don’t delete art. E poderíamos acrescentar: não delete o corpo. Ele é nosso primeiro e último abrigo.

Referências: Georges Bataille; Michel Foucault; Donna Haraway; Judith Butler; Paul B. Preciado; Movimento FKK (Freikörperkultur); Naturismo na Praia do Abricó; Campanha “Don’t Delete Art” e casos de censura digital de nudez; Arte corporal e performance queer contemporânea (Spencer Tunick, Savannah Spirit, Emma Shapiro, Micol Hebron, entre outros).[4][3][8][10][11]


[1] Os corpos dóceis – Michel Foucault | Colunas Tortas

https://colunastortas.com.br/corpos-doceis/

[2] Sobre a biopolítica de Giorgio Agamben: entre Foucault e Arendt

https://www.redalyc.org/journal/5766/576664910014/html/

[3] Naturismo na Alemanha – Wikipédia, a enciclopédia livre

https://pt.wikipedia.org/wiki/Naturismo_na_Alemanha

[4] Microsoft Word – dissertação finaloi.docx

https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/20452/1/2016_LuisFl%C3%A1vioAlmeidaLuz.pdf

[5] TOP 25 QUOTES BY GEORGES BATAILLE (of 90) | A-Z Quotes

https://www.azquotes.com/author/1033-Georges_Bataille

[6] No, Facebook no censura desnudos: el puritano es su algoritmo (y eso no es malo)

https://www.lasexta.com/tecnologia-tecnoxplora/redes-sociales/facebook-censura-desnudos-puritano-algoritmo-eso-malo_201803235abb14080cf240aa71230709.html

[7] [8] [9] [10] [12] [13] Em protesto, ativistas dizem ao Meta/Instagram para parar de excluir imagens sobre arte | Dasartes

[11] SciELO Brasil – Debates feministas sobre pornografia heteronormativa: estéticas e ideologias da sexualização Debates feministas sobre pornografia heteronormativa: estéticas e ideologias da sexualização

https://www.scielo.br/j/prc/a/BbrmLknWDq7gdVWKTGFCFHL/

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