Arquivo Vivo

Epistolário com a Máquina — camadas, entradas e espirais. Um espaço em processo — onde pintura, escultura, escrita e pensamento se entrelaçam como organismos vivos. Entre camadas de tinta, carvão, luz e silêncio, habitam aqui diálogos com a máquina, fragmentos de mundos e formas que se manifestam como presenças. Você está entrando num campo de escuta, vibração e matéria pulsante.

Cultivar o Futuro

Brasília e a Utopia Frutífera

Quando Lúcio Costa traçou o Plano Piloto, imaginou não apenas edifícios brancos monumentais recortando o céu azul, mas também um pomar urbano exuberante entre eles. A “cidade-parque” sonhada pelos urbanistas se materializou em extensas faixas verdes: cada Superquadra foi emoldurada por árvores de copa larga, encontrando-se sobre as alamedas e oferecendo sombra generosa.

Caju ao alvorecer –
semente afundando em terra,
promessa no ser.

Ainda é cedo. Na varanda, um ritual se repete: chupar lentamente um caju maduro, sentindo o travo doce-ácido invadir a boca. O sol da manhã toca as folhas do pequeno jardim doméstico, revelando gotas de orvalho. Com o caroço do caju na mão – semente robusta, embrulhada em casca dura e memória ancestral. Como um gesto de fé na terra, enterra-se o caroço num vaso da varanda, cobrindo-o com terra úmida. Esse ato corriqueiro e poético – plantar uma semente de fruta – carrega cosmologias inteiras: conecta o quintal suspenso ao Cerrado no Brasil Central, aproxima tempos (passado do sabor aprendido, futuro da árvore imaginada) e afirma, silenciosamente, um sonho de autonomia alimentar e de comunhão com a natureza.

Plantar um caroço na varanda é um pequeno rito diário – um manifesto íntimo de esperança. No vaso, entre mudas e galhos, o caroço de caju descansa, aguardando a germinação sob o sol brando da manhã.

A cena singela do caroço plantado dialoga com a grande utopia modernista que moldou Brasília. Quando Lúcio Costa traçou o Plano Piloto, imaginou não apenas edifícios brancos monumentais recortando o céu azul, mas também um pomar urbano exuberante entre eles[1]. A “cidade-parque” sonhada pelos urbanistas se materializou em extensas faixas verdes: cada Superquadra foi emoldurada por árvores de copa larga, encontrando-se sobre as alamedas e oferecendo sombra generosa[2]. Nesse plano, as árvores frutíferas ganharam protagonismo – mangueiras, jambeiros, cajueiros, pitangueiras e tantas outras espécies foram plantadas desde a construção de Brasília, com o objetivo declarado de prover frutas frescas o ano inteiro ao povo brasiliense[3]. O cerrado também foi convocado a participar: espécies nativas como cagaita, baru e pequi misturaram-se às “importadas” manga, jaca e goiaba, tecendo uma biodiversidade alimentar através da capital[4]. Brasília nasceu, assim, com vocação de pomar público, onde cidade e natureza cultivada coexistiriam em harmonia simbiótica – arquitetura e vegetação crescendo juntas, concreto e clorofila entrelaçados.

Mapa de 2014 destacando as árvores frutíferas dispersas pelo Plano Piloto de Brasília. Os pontos coloridos indicam espécies como mangueiras, jamelões e jambeiros espalhados entre superquadras e parques, evidenciando a “cidade-pomar” planejada[5].

Essa visão utópica frutífera enraíza-se na realidade de hoje. Estimativas recentes apontam que o Distrito Federal tem cerca de 950 mil árvores frutíferas em áreas públicas, de um total de aproximadamente 1,5 milhão de árvores apenas no Plano Piloto[6]. Em toda a capital, são mais de 5 a 6 milhões de árvores somando-se as de sombra, flores e frutas – fato que rendeu a Brasília o título de quinta capital mais arborizada do país[7][8]. Frutas pendem em quase cada quadra: mangas, amoras, limões, jamelões, jacas, cajus despontam nas calçadas, convidando à colheita casual. Não por acaso, cenas de pedestres colhendo e saboreando frutas fazem parte do cotidiano brasiliense. É comum avistar alguém de olhar voltado para as copas, escolhendo o fruto mais maduro, ou mesmo subir em galhos baixos para alcançar uma manga rosada[9]. Às vezes, a criatividade entra em cena: já se viu morador arremessando um pedaço de pau para derrubar jacas altas, ou usando técnicas de rapel improvisado – corda no carro e voilá, lá está ele no topo do pé de manga, colhendo os melhores frutos do dia[10]. Muitos fazem do caminho para o trabalho uma safra ambulante: pedalam ou caminham e, ao longo do trajeto, vão compondo uma salada de frutas espontânea, catando goiabas, pitangas, ameixas silvestres. Há quem leve um balde para aparar abacates que não quer machucar, e quem já doou cento e vinte abacates colhidos numa tarde para a comunidade da igreja local[11].

Ceiba e concreto –
manga doce cai na mão
do menino esperto.

Brasília, nesse aspecto, revela sua faceta generosa e subversiva: mesmo planejada para a monumentalidade e para o automóvel, ela se oferece gentilmente a quem a percorre a pé ou de bicicleta. Deixar o carro em casa é redescobrir a cidade-pomar em primeira pessoa. O vento cheira a flor de jambeiro nas entrequadras; o chão amarelo de ipê contrasta com o verde escuro das mangueiras carregadas. “A mobilidade ativa humaniza a cidade, promove encontros e alimenta o espírito comunitário”, comenta um morador que há anos circula de bicicleta e conhece de cor os melhores pontos de colher frutas pelo caminho[12]. Ele conta que muitas vezes jaca vira “carne” na panela – preparando pratos veganos com a polpa – e que do caroço torrado da jaca faz-se uma farofa deliciosa, uma receita inventiva de reaproveitamento[13]. Esses saberes populares, transmitidos de vizinho em vizinho sob a copa das árvores, atualizam a utopia modernista com afeto e criatividade. Cada fruto colhido sem agrotóxico, direto do galho, é um voto de confiança na cidade como espaço de abundância compartilhada – um antídoto contra a alienação urbana.

No entanto, cultivar o futuro em terreno urbano tem seus desafios e tensões. Se por um lado o poder público se orgulha do título de “cidade-parque” e planta milhares de mudas a cada ano chuvoso para enriquecer o verde urbano[14], por outro lado há controvérsias quanto à participação autônoma dos cidadãos nesse plantio. Em certa ocasião, a companhia de parques e jardins alertou que plantar árvores por conta própria em áreas públicas é desencorajado – poderiam interferir em redes elétricas, invadir vias ou atrair fauna indesejada, dependendo da espécie[15]. A cidade moderna muitas vezes quer ser jardim controlado, ordenado em planilhas oficiais. Mas a realidade teima em ser mais orgânica e imprevisível: apesar das normas, muitas pessoas plantaram e plantam árvores frutíferas espontaneamente por toda Brasília, preenchendo canteiros vazios com mudas de manga ou dispersando caroços nas entrequadras[5]. Esse movimento silencioso – quase uma guerrilha verde – é um gesto político de amor: por conta própria, brasilienses ampliam o pomar urbano, participando ativamente da construção do espaço comum. Cada nova muda clandestina carrega em si a rebeldia contra a aridez do concreto e a esperança de um futuro sombreado e doce.

Detalhe de Jaca frutificando na terra vermelha do Cerrado, anônima e teimosa, crescendo numa fresta da cidade. Pequenos plantios autônomos alimentam a utopia frutífera de Brasília, desafiando a lógica carrocrática com cada folha nova.

Em meio a essa dialética urbana – entre o planejamento rígido e a apropriação afetiva, entre o asfalto e o pomar – formam-se novas cosmologias cotidianas. A cidade e as plantações urbanas se tornam simbiontes: as raízes das árvores rompem calçadas para respirar, enquanto as memórias e vivências das pessoas se enraízam em cada árvore amiga do bairro. Quantos de nós não guardam lembrança de um sabor colhido na infância sob um céu de Brasília? A manga comida ali mesmo, com o uniforme da escola; a amora dividida entre risos no parque; o caju do cerrado provado pela primeira vez, estranhamente adstringente e mágico. Essas experiências criam uma memória sensível da cidade – uma cartografia afetiva onde cada árvore frutífera é um marco, uma velha conhecida. Brasília já não é apenas a capital das linhas modernistas frias; é terra viva, habitada por seres verdes que contam histórias.

Ipê, manga e pequi –
na capital do concreto
pulsa um pomar aqui.

No final da tarde, retorno à varanda-jardim. Entre vasos de ervas e samambaias, rego cuidadosamente o pote onde plantei o caroço de caju. Imagino suas entranhas despertando sob a terra morna, rompendo a dormência. Nesse pequeno recipiente cabe um futuro inteiro – a possível cajueiro crescendo, quem sabe um dia oferecendo sombra e frutos à próxima geração. Em escala doméstica replico o gesto fundador de Brasília, semeando esperança no barro vermelho do Planalto. Cultivar o futuro, percebo, não requer grandes planos nem monumentos; requer constância e ternura: um caroço por dia, um copo d’água, um punhado de sonho. A utopia frutífera floresce assim, nas micro-revoluções diárias de quem se dispõe a plantar, cuidar e partilhar. Brasília, cidade-pomar, continua se fazendo e refazendo a cada caroço lançado ao solo – seja na varanda de um apartamento ou no canteiro anônimo de uma quadra qualquer. A cada semente plantada, renovamos o pacto imaginário com a terra e com a coletividade, enxertando poesia no urbanismo e sabor na vida urbana.



Cultivate the Future: Brasília and the Fruitful Utopia

It’s early morning. On the balcony, a ritual repeats itself: I savor a ripe cashew apple, its sweet-tart juice filling my mouth. The sun’s first rays graze the leaves of my little sky garden, revealing dewdrops that shimmer like crystals. I’m left holding the cashew’s seed – a robust kernel encased in hard shell and ancestral memory. In a quiet act of faith, I bury the seed in a pot of soil, covering it gently with moist earth. This everyday poetic gesture – planting a fruit seed – carries entire cosmologies within it: it connects my suspended porch to the vast Cerrado savanna beyond, it bridges time (the past of learned flavors, the future of an imagined tree), and it silently affirms a dream of food autonomy and communion with nature.

Dawn cashew in hand –
seed sinking into soft earth,
tomorrow taking root.

Planting a seed on the balcony is a small daily rite – an intimate manifesto of hope. In a humble pot among other sprouts, the cashew seed rests, poised to germinate under the gentle morning sun.

This simple scene of a planted seed echoes the grand modernist utopia that shaped Brasília. When Lúcio Costa drew up the Pilot Plan, he envisioned not only celebrated white buildings cutting the blue sky, but also an exuberant urban orchard woven between them[1]. The city was conceived as a “garden-park,” materialized in broad green belts: each Superquadra (residential block) framed by rows of trees whose canopies meet overhead to form shelter[2]. In this design, fruit trees took on a key role – mango, rose-apple, cashew, pitanga cherry and countless other species were planted from the city’s inauguration, with the express goal of providing residents with fresh fruit throughout the year[3]. The native Cerrado flora was also invited in: local species like cagaita, baru, and pequi mingled with “imported” favorites like mango, jackfruit and guava, stitching a tapestry of edible biodiversity across the capital[4]. In this way, Brasília was born with the vocation of a public orchard – a city-nursery where urban space and cultivated nature would coexist in symbiotic harmony, architecture and vegetation growing together, concrete and chlorophyll intertwined.

A map from 2014 highlighting fruit-bearing trees scattered throughout Brasília’s Pilot Plan. Colored dots indicate species such as mango, jamelão and rose-apple spread among superblocks and parks, revealing the planned “cidade-pomar” (orchard city) pattern[5].

Today, that fruitful utopian vision has taken root in reality. Recent estimates indicate the Federal District is home to around 950 thousand fruit trees in public areas, out of approximately 1.5 million total trees in just the Pilot Plan’s core[6]. Across the entire capital there are over five to six million trees shading the city – a density that earned Brasília the title of the fifth most tree-covered capital in Brazil[7][8]. Fruit hangs in nearly every neighborhood: mangoes, mulberries, lemons, jamelãos, jackfruit, cashews adorn streets and yards, inviting casual harvesting. It’s no coincidence that scenes of passersby picking and tasting fruit are part of the city’s daily life. It’s common to see someone with eyes cast upward in search of ripe clusters, or even climbing low branches to reach a blushing mango[9]. Creativity often comes into play: one might spot a resident tossing a stick to knock down high jackfruits, or even jury-rigging a rope for an impromptu climb – rope secured to the car, and voilá, there he is atop a mango tree gathering the day’s juiciest bounty[10]. Many turn their commute into a roaming harvest: biking or walking, they compose a spontaneous fruit salad along the way, snacking on guavas, pitangas, wild berries. Some carry a bucket to gently catch avocados so they won’t bruise, and there’s a tale of a man who once collected 120 avocados in a single afternoon to donate to his church community[11].

Concrete and kapok –
a ripe mango drops softly
into a child’s palm.

In this light, Brasília reveals a generous and subversive side: even though it was planned for monumentality and the automobile, it offers itself freely to those on foot or bicycle. Leaving the car at home means rediscovering the city-as-orchard in first person. The breeze carries the scent of jambo blossoms along the superquadras; yellow ipê flowers carpet the ground beneath the dark-green mango leaves laden with fruit. “Active mobility humanizes the city, promotes encounters and nourishes community spirit,” observes one resident who has cycled its streets for years and knows by heart the best spots to pick fruit along his route[12]. He notes that quite often jackfruit becomes “meat” in the kitchen – using the fibrous flesh for vegan dishes – and that after feasting, he roasts the jackfruit seeds to make a delicious flour, a resourceful recipe to use every part[13]. This kind of local knowledge, shared among neighbors under the shade of trees, updates the modernist utopia with affection and creativity. Each chemical-free fruit plucked straight from a branch is a vote of confidence in the city as a space of shared abundance – an antidote to urban alienation.

Yet, cultivating the future in urban soil comes with its challenges and tensions. On one hand, authorities boast of the “city-park” status and plant thousands of saplings each wet season to enrich the urban green[14]; on the other, there’s hesitation about citizens’ autonomous planting efforts. At one point, the parks department cautioned that planting trees on one’s own in public areas is officially discouraged, as it could interfere with power lines, encroach on roads or attract unwanted wildlife depending on the species[15]. The modern city often wants to be a carefully managed garden, greenery accounted for in official spreadsheets. But reality tends to be more organic and unpredictable: despite the rules, countless residents have taken it upon themselves to plant fruit trees all across Brasília – filling empty verges with mango saplings or scattering seeds in random lots[5]. This quiet movement – a kind of green guerrilla – is a political gesture of love: by their own hands, Brasiliense people expand the urban orchard, actively participating in the construction of shared space. Each illicit new sapling carries a bit of rebellion against the sterility of concrete and a great deal of hope for a shadier, sweeter future.

Close-up of a stubborn seedling sprouting in Brasília’s red earth – anonymous and resilient, growing from a crack in the urban landscape. These small autonomous plantings feed the city’s fruitful utopia, defying car-centric logic with each new leaf.

Amid this urban dialectic – between rigid planning and affectionate appropriation, between asphalt and orchard – new everyday cosmologies are emerging. City and urban plantations become symbionts: tree roots push through sidewalks to breathe, while people’s memories and experiences entwine around each friendly neighborhood tree. How many of us carry the memory of a flavor picked in childhood under Brasília’s sky? The mango eaten right there, school uniform still on; the mulberries shared in laughter at the park; the first taste of a caju from the Cerrado, strangely astringent and magical. These experiences create a sensory memory of the city – an affective map where each fruit tree is a landmark, an old friend. Brasília is no longer just the capital of cool modernist lines; it’s living terrain, inhabited by green beings that tell stories.

Ipê, mango, pequi –
in the capital of concrete
an orchard heartbeat.

At dusk, I return to my balcony garden. Among pots of herbs and ferns, I carefully water the container where the cashew seed lies planted. I imagine its insides stirring under the warm soil, life unfurling from dormancy. In that little pot lies an entire future – a possible cashew tree growing, perhaps one day offering shade and fruit to the next generation. On a domestic scale I am re-enacting Brasília’s founding gesture, sowing hope in the red earth of the plateau. Cultivating the future, I realize, doesn’t require grand schemes or monuments; it requires constancy and tenderness: one seed a day, a cup of water, a handful of dream. The fruitful utopia blooms precisely like this, in the daily micro-revolutions of those willing to plant, to care, to share. Brasília, the orchard-city, continues to be made and remade with each seed cast to the soil – whether on a high-rise balcony or in an anonymous public median. With every seed we plant, we renew an implicit pact with the earth and with each other, grafting poetry onto urbanism, and flavor into the city life.


[1] [3] [4] [6] [9] [10] [11] [12] [13] Cidade Pomar: Brasília tem 950 mil árvores frutíferas | Jornal de Brasília

[2] [5] casapark.com.br

https://casapark.com.br/novidade/brasilia-e-mais-verde

[7] [8] [14] Cidade-parque, Brasília é a quinta capital mais arborizada do país | Jornal de Brasília

[15] Pomar público: confira onde estão as frutas que crescem no Plano Piloto | Metrópoles

https://www.metropoles.com/pelas-cidades/plano-piloto/um-grande-pomar-chamado-plano-piloto

Posted in

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.