Cabo Frio, década de 1980: desejo, culpa e infância

Um ensaio que entrelaça memória, psicanálise e carnaval como arquivo simbólico.

Essas imagens são verdadeiros fragmentos da memória visual do Carnaval de Cabo Frio nos anos 80 — uma época marcada por blocos caricatos, fantasias exuberantes e uma sensualidade escancarada que contrastava com os discursos de moralidade e religião que a chamada Família Brasileira, sustentada pela matriz heteronormativa do capitalismo colonial, internalizou via Igreja Evangélica.

O Complexo Madonna–Puta (Freud reapropriado)

O chamado “complexo Madonna–puta” refere-se à cisão psíquica (mas também cultural) que coloca as mulheres em dois polos contraditórios:

  • de um lado, a Madonna (a figura pura, idealizada, materna, ligada à devoção e à castidade);
  • de outro, a Puta (a figura da sensualidade livre, da transgressão erótica, do desejo).

No Brasil dos anos 80, esse dualismo era reforçado por imagens midiáticas e pelo carnaval televisivo, mas também tensionado: revistas como Manchete exibiam fantasias ousadas (como na capa de 1989), enquanto ao mesmo tempo os discursos conservadores das igrejas evangélicas ganhavam força no espaço público, pregando a condenação dessas mesmas expressões de corpo e prazer.

Cabo Frio como palco

As fotos dos blocos temáticos — Carnaval dos Samurais, Carnaval do Xingu, Carnaval das Gatinhas — mostram como os corpos eram colocados como espetáculo, cenografados em exotismos (Índias, Cleópatras, japonesas estilizadas), reforçando o olhar masculino dominante e um certo orientalismo tropical. Ao mesmo tempo, esses desfiles eram também espaços de liberação, onde o corpo feminino podia se afirmar na rua, no sol, diante da multidão, em oposição à clausura moral.

A praia, os trios, as fantasias mínimas, os blocos lotados — tudo isso formava um teatro popular de desejo, uma pedagogia paralela ao catecismo evangélico. Para quem cresceu nesse ambiente, o choque entre as imagens públicas do carnaval e os discursos religiosos privados poderia ser devastador: uma espécie de guerra interna entre a promessa do prazer e a ameaça da culpa.

Madonna–Puta, Igreja e Internalização Materna

Se mães internalizaram fortemente essa lógica, não foi apenas por escolha individual, mas porque estavam imersas nessa tensão cultural:

  • o carnaval como expressão de liberdade e corpo-mulher-objeto-de-desejo, estampado em revistas e TV;
  • a igreja como espaço de disciplina, penitência e recusa da carne.

Esse atrito ajuda a entender como a subjetividade feminina de toda uma geração foi marcada pela cisão entre corpo e espírito, gozo e pecado, festa e redenção.

No fundo, o “complexo Madonna–Puta” não é apenas freudiano: ele foi também projetado no tecido social brasileiro, especialmente nos anos 80, quando o consumo midiático de corpos se intensificou, enquanto o neopentecostalismo expandia suas fronteiras. Cabo Frio, nesse contexto, vira um arquivo vivo dessa batalha simbólica.

Esse conflito não se restringia aos adultos.

As chamadas “crianças viadas” — expressão popular que expõe o constrangimento e a violência dirigida a corpos queer desde a infância — cresciam nesse ambiente, obrigadas muitas vezes a dissimular uma falsa heteronormatividade para sobreviver ao bullying familiar, escolar, religioso e social. Essa experiência atravessa gerações e marca até hoje a formação de subjetividades queer no Brasil, forjadas entre desejo, disfarce e resistência.

Rodrigo Garcia Dutra e ChatGPT‑5 — em sessão de autoanálise, no divã psicanalítico, tecendo memória, teoria e imagens carnavalescas em Arquivo Vivo

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