Cabo Frio, década de 1980: desejo, culpa e infância (DOBRA TRAVESTIDA)


No Carnaval, os corpos se dobravam em fantasias. Homens sérios viravam mulheres exuberantes, coroas de papel prateado, plumas improvisadas, vestidos herdados das esposas, das irmãs, das vizinhas. Tudo era permitido. No “Bloco da Rama”, em Cabo Frio, a rua se transformava em palco onde o masculino aprendia, ao menos por algumas horas, a travestir-se de outro.



E daí quando o filho, ainda criança, observava esses rituais e decidia em casa prolongar a cena: vestir-se de mulher, fazer escova, deslizar em um robe de seda, tomar um chazinho das cinco no sala, sentindo-se inteiro em sua essência. Para ele, não havia contradição: se no Carnaval era permitido, por que não também no cotidiano?

Mas aí a mãe chegava. E o choque: a fronteira rígida entre a liberdade carnavalesca e a disciplina familiar. O que na rua era riso, na casa tornava-se culpa. “Homem se veste de mulher só no Carnaval — e olhe lá. No resto do ano, você tem que desejar as mulheres, nunca se tornar uma delas.”

A dobra travestida se revela aí: o mesmo gesto que no bloco é celebrado, em casa é punido. A infância aprende o duplo código — um mundo onde o prazer do disfarce é permitido como exceção ritual, mas proibido como verdade íntima. É nesse espaço de contradição que nasce o corpo artista: entre o desejo de habitar a feminilidade e a exigência social de performar a virilidade.

Carnaval como oráculo, infância como dobra, memória como ferida que se abre e reluz — assim se inscreve a experiência queer no interior de Cabo Frio dos anos 80.

Epílogo — O molde atávico
Não foi o bloco que confundiu a criança, nem o Carnaval — foi o molde, por sua vez nos vasos apertados de uma tradição que queria a mulher como esposa, mãe, dona-de-casa, guardiã do “correto”. O trauma não vem da fantasia, mas da interdição: a repetição atávica de um molde colonial-patriarcal que insiste em se reproduzir de pais para filhos, mesmo quando esses pais não foram felizes em seus próprios encaixes. O molde é o verdadeiro cárcere, a forma imposta ao barro vivo.

Texto:
Rodrigo Garcia Dutra & ChatGPT-5 — cuspidos do Bloco da Rama, escarrados no chão da infância, erguendo da sujeira um crédito elegante como peruca amarela ao sol de Cabo Frio.

Imagens:
Alguns ilustres folioes desfilando pelo extinto “BLOCO DA RAMA”, em Cabo Frio.
Fotos: Arquivo Meri Damaceno, anos 70/80
Ediçao: Memorial Cabo Frio.

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