Cérebro, arte abstrata, arte figurativa: descobertas recentes da neurociência

Texto gerado em colaboração entre Rodrigo Garcia Dutra e o Largo Modelo de Linguagem ChatGPT-4.5 — entre vibrações, afetos e sonhos compartilhados.

Quando nos deparamos com uma pintura abstrata em um museu, o que realmente vemos e sentimos? A tela sem figuras reconhecíveis pode evocar uma lembrança antiga, um senso de espiritualidade, curiosidade ou mesmo confusão. Artistas e filósofos há muito se perguntam o que torna a experiência da arte tão pessoal e subjetiva. Hoje, a neurociência começa a iluminar essas questões. Um estudo recente publicado na Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) investigou o que acontece no cérebro humano ao apreciar arte abstrata em comparação à arte figurativa (ou representativa, isto é, realista). As descobertas lançam uma nova luz sobre como construímos significado diante de imagens ambíguas e sugerem que, diante da arte abstrata, “a obra de arte é completada pelo espectador” – em outras palavras, cada observador preenche a obra com suas memórias, emoções e associações pessoais. A seguir, exploraremos os principais experimentos por trás dessas descobertas, o que elas revelam sobre percepção, emoção e memória, as diferenças da resposta cerebral à arte abstrata versus arte figurativa, e possíveis implicações para artistas contemporâneos, educadores e terapeutas. Por fim, conectaremos essas ideias a conceitos poéticos e filosóficos – da “linha orgânica” de Lygia Clark às noções de narrativa em Lacan, Harari e Ailton Krenak – para refletir sobre o papel da arte e da imaginação na construção da nossa realidade.

Experimentos neurocientíficos recentes: arte abstrata vs. arte figurativa

O estudo destacado, conduzido por pesquisadores da Universidade Columbia (com participação do Nobel Eric Kandel, conhecido por unir arte e ciência), constitui um marco na neuroestética – o campo que une arte e neurociência. Os cientistas recrutaram 59 voluntários e examinaram seus cérebros por meio de ressonância magnética funcional (fMRI) enquanto estes observavam diversas pinturas, tanto abstratas quanto figurativas/realistas. As obras incluíam pares de pinturas do mesmo artista em estilos diferentes – por exemplo, um Paisagem com casa realista versus uma composição totalmente abstrata de Piet Mondrian. Durante o experimento, os participantes simplesmente contemplavam as imagens, permitindo que sua mente reagisse livremente, enquanto a atividade cerebral era registrada. Este método permitiu comparar diretamente as respostas neurais evocadas por arte abstrata em oposição à arte figurativa no mesmo grupo de pessoas.

Imagem do experimento: A figura abaixo ilustra esse contraste. À esquerda, uma pintura figurativa de Mondrian e, à direita, sua contraparte abstrata, com sobreposições de imagens de cérebro realçando as áreas cerebrais de interesse identificadas pelo estudo. (Os realces em azul e amarelo indicam diferenças de atividade em certas redes cerebrais conforme o tipo de arte visualizada.)

Comparação ilustrativa entre a apreciação de arte figurativa (esquerda) e abstrata (direita) e suas correlações cerebrais. O estudo de Durkin et al. examinou pares de obras do mesmo artista (ex.: Mondrian) para isolar diferenças na atividade neural. No caso da arte abstrata (direita), notou-se maior envolvimento da chamada rede de modo padrão (marcada em amarelo), associada à imaginação e à busca de memórias.

Os pesquisadores batizaram o trabalho de “The Beholder’s Share” (“A parte do observador”), ecoando um conceito da história da arte que propõe que a experiência artística é co-criada pelo observador. Ou seja, diferente de uma cena objetiva, a obra de arte – especialmente a abstrata – só se completa quando quem a observa projeta nela suas próprias referências internas. Para testar essa ideia empiricamente, o experimento mediu quanta variabilidade havia nas respostas cerebrais dos indivíduos quando viam pinturas abstratas em comparação às figurativas. A hipótese era que, se cada pessoa “completa” a arte abstrata de maneira única, então as assinaturas neurais deveriam divergir mais de pessoa para pessoa no caso das obras abstratas do que nas obras figurativas, nas quais o tema é mais explícito.

Descobertas sobre percepção, emoção e memória na arte abstrata

Percepção visual inicial: Surpreendentemente, os resultados mostraram pouca diferença nos estágios iniciais de percepção visual para os dois tipos de arte. No nível do córtex visual (a região do cérebro que primeiro processa as informações dos olhos), a atividade era equivalente quando os participantes olhavam pinturas abstratas ou figurativas. Em outras palavras, todos “viram a mesma coisa”, captando as cores, formas e padrões básicos da tela de forma semelhante. Isso indica que o input sensorial de uma pintura abstrata não é necessariamente mais “caótico” ou difícil de processar que o de uma pintura realista – nossos olhos e o cérebro visual extraem as formas e cores iniciais de ambos os estilos de modo comparável.

Interpretação, imaginação e memória: As diferenças essenciais emergiram nos níveis superiores de processamento, ligados à interpretação e ao significado pessoal. Nas pinturas abstratas, cada pessoa apresentou um padrão de ativação cerebral mais único do que nas pinturas figurativas. Em particular, notou-se maior envolvimento da rede de modo padrão (também conhecida pela sigla DMN, do inglês default mode network). Essa rede cerebral é associada a processos de imaginação, busca de memórias e pensamento autorreferencial – as mesmas funções acionadas quando divagamos ou refletimos sobre nossas próprias lembranças e narrativas internas. No contexto da arte abstrata, isso sugere que o observador puxa de seu repertório interno memórias pessoais, emoções passadas e conceitos próprios para tentar dar sentido às formas ambíguas que vê. De fato, os cientistas concluíram que cada indivíduo contribui com mais associações pessoais ao contemplar arte abstrata do que frente à arte representativa. Em contraste, diante de uma pintura figurativa (digamos, um retrato ou paisagem familiar), diferentes espectadores tendem a convergir mais nas interpretações – o barco representado é “um barco” para todos, por exemplo – e isso se reflete em padrões cerebrais mais alinhados entre as pessoas.

Essa descoberta reforça como a arte abstrata funciona quase como um espelho da mente: devolve ao observador não uma mensagem pronta, mas os ecos daquilo que ele mesmo projetou ali. A experiência subjetiva varia enormemente – para alguns uma mesma mancha abstrata pode despertar ternura ou nostalgia, para outros, nada além de formas sem sentido. Neurologicamente, essa variabilidade subjetiva parece provir de processos cognitivos elevados (imaginação, memória, auto-reflexão) em vez de diferenças na percepção sensorial básica.

Emoção e apreciação estética: Embora o estudo tenha focado na variação individual e não medido diretamente as emoções de cada participante no scanner, ele levanta perguntas importantes sobre o papel das respostas emocionais na apreciação da arte. Seria essa diferença entre abstrato e figurativo também fruto de distintas reações emocionais ou preferências estéticas? É plausível. Diante de uma obra figurativa, sobretudo se reconhecemos o tema, podemos sentir emoções mais diretas (por exemplo, uma pintura realista de um bebê pode evocar ternura; uma cena de guerra pode chocar). Já a arte abstrata frequentemente provoca emoções mais sutis e variadas – pode fascinar pela combinação de cores, inquietar por sua estranheza, ou acalmar pela harmonia das formas. O cérebro, ao não encontrar um significado óbvio na imagem abstrata, pode alternar entre surpresa, curiosidade e até leve frustração, até que o observador atribua algum sentido pessoal àquilo. Essa jornada emocional interna é muito particular: para alguns, a liberdade interpretativa da arte abstrata é prazerosa, quase lúdica; para outros, a falta de um motivo claro pode gerar desconforto ou desinteresse. Em ambos os casos, porém, a emoção surge de dentro – das associações que o observador traz à tona – em vez de ser ditada explicitamente pela cena, como ocorre na arte figurativa.

Há também evidências de que a contemplação da arte em geral beneficia o cérebro e as emoções. Estudos demonstram que olhar para obras de arte pode reduzir o estresse e induzir bem-estar. Um experimento notável pediu que trabalhadores estressados de Londres passassem 40 minutos de seu almoço em uma galeria de arte; ao medir o cortisol (hormônio do estresse) na saliva antes e depois, constatou-se uma redução de cerca de 32% nos níveis de cortisol, uma queda que normalmente levaria cinco horas para ocorrer sem a intervenção artística. Em outras palavras, uma pausa com arte acelerou a recuperação do estresse em quase cinco vezes. Não é de se estranhar, portanto, que a arte abstrata seja empregada em terapias para transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), depressão e outras condições relacionadas ao estresse – ajudando pacientes a processar emoções difíceis e reduzir a ansiedade. Cores e formas abstratas podem servir como um canal seguro para expressar sentimentos que não conseguiriam ser verbalizados, ou simplesmente proporcionar um alívio estético que acalma a mente.

Além do campo emocional, a arte parece também potencializar a memória e o aprendizado. Ao contemplar uma imagem, nosso cérebro não apenas a processa visualmente, mas pode gravar de forma mais duradoura ideias associadas a ela. Uma teoria proposta é que pausar para apreciar a beleza de algo facilita aprender sobre aquele assunto, pois o fascínio estético desperta prazer e curiosidade, o que por sua vez nos motiva a fazer perguntas e buscar entender mais. Nas palavras de um autor, quando observamos atentamente uma obra de arte, “os conceitos ou as histórias retratados se fixam em sua mente como o pólen nas patas das abelhas”, carregando conhecimento de flor em flor – ou melhor, de imagem em imagem, através do tempo. Assim, a arte ensina de modo indireto: ao encantar, ela faz lembrar.

Comparações entre a resposta cerebral à arte abstrata e à arte figurativa

Reunindo os pontos acima, podemos traçar um contraste claro entre como o cérebro reage à arte abstrata versus figurativa:

  • Convergência vs. Divergência: Diante de arte figurativa (realista), os cérebros de diferentes pessoas tendem a responder de forma mais semelhante entre si, refletindo a interpretação mais convergente da cena. Já a arte abstrata produz respostas cerebrais muito mais divergentes de um indivíduo para outro, espelhando a variedade de significados pessoais atribuídos. É como se cérebros distintos “sincronizassem” mais ao ver um mesmo objeto reconhecível, mas ao ver um quadro abstrato cada cérebro seguisse um voo solo em sua própria direção imaginativa.
  • Percepção sensorial equivalente: Nas etapas iniciais do processamento visual, não há diferença significativa – o córtex visual de todos ativa-se de modo parecido tanto para linhas e cores abstratas quanto para figuras e objetos concretos. Portanto, a diferença não está nos olhos, e sim na mente.
  • Rede de modo padrão (DMN) e subjetividade: A divergência aparece nas regiões associativas de alto nível, especialmente na DMN. Durante a apreciação de arte abstrata, a DMN de cada participante exibiu padrões de atividade mais idiossincráticos. Essa rede – que engloba áreas como o córtex pré-frontal medial e o precúneo – é conhecida por ativar-se quando estamos recordando memórias pessoais, imaginando cenários ou pensando sobre nós mesmos (por exemplo, ao entender as entrelinhas de uma história ou refletir sobre um conceito abstrato). O achado de que a DMN se envolve mais e de forma variada na arte abstrata indica que cada observador está criando sua própria “narrativa interna” para decifrar a obra. Por outro lado, com arte figurativa, a interpretação demanda menos essa construção interna – a DMN pode até ser ativada se a obra provocar reflexões pessoais ou tiver significado especial para alguém, mas, em geral, parte do “trabalho” já vem pronto na imagem (a história ou objeto retratado é explícito). Conforme comentou a autora principal Celia Durkin, essas evidências “apoiam a ideia de que os observadores tendem a analisar a arte abstrata de uma maneira exclusivamente pessoal”.
  • Outras redes e áreas cerebrais: No caso da arte figurativa, especialmente se envolve rostos, corpos ou paisagens familiares, é provável que ative de forma mais consistente regiões especializadas como a área fusiforme do rosto (se há pessoas retratadas) ou áreas do lobo temporal que armazenam conhecimento sobre objetos e cenas. Essas ativações tendem a ser similares entre indivíduos – praticamente todos identificarão um rosto humano ou uma árvore da mesma forma básica, acionando circuitos similares de reconhecimento. Já a arte abstrata evita acionar esses atalhos de reconhecimento automático, pois não oferece elementos inequívocos para identificar. Assim, ela força o cérebro a explorar outros caminhos: alguns espectadores podem engajar redes de reconhecimento de padrões visuais tentando encontrar algo familiar na abstração (por exemplo, “essa forma me lembrou um rosto sorridente”), enquanto outros podem nem tentar reconhecer, e em vez disso mergulham diretamente em associações emocionais ou reflexões conceituais (acionando redes límbicas de emoção ou redes frontais de pensamento conceitual). Essa distribuição mais difusa e personalizada de ativação cerebral frente ao abstrato contrasta com a ativação focal e previsível frente ao figurativo.

Em resumo, a arte figurativa provoca no cérebro uma espécie de dança coordenada – muitos cérebros diferentes “dançam” passos parecidos quando veem o mesmo motivo concreto. Já a arte abstrata faz cada cérebro dançar ao seu próprio ritmo, criando coreografias neurais únicas, sintonizadas pelas lembranças, fantasias e sentimentos individuais de cada observador. Essa conclusão fornece uma comprovação científica elegante para algo que os teóricos da arte já intuíram: na arte abstrata, o observador é coautor da experiência estética.

Implicações para artistas, educadores e terapeutas

As revelações acima carregam diversas implicações práticas e conceituais:

  • Para artistas contemporâneos: Saber que a arte abstrata engaja mais fortemente as associações pessoais do público pode inspirar artistas a valorizar a ambiguidade e o espaço de interpretação em suas obras. A pesquisa dá respaldo neurocientífico à ideia de que sugerir pode ser mais poderoso do que mostrar. Um artista abstrato pode intencionalmente criar formas abertas a múltiplas leituras, confiando que cada espectador completará a obra de modo singular – em essência, fazendo da mente do público parte do material artístico. Por outro lado, artistas figurativos que desejam um engajamento mais individualizado poderiam introduzir elementos de mistério ou polissemia em obras realistas, mesclando o figurativo com toques abstratos para convidar a participação interpretativa do observador. Em ambos os casos, compreender essas dinâmicas cerebrais reforça o papel do artista como arquitet@ de experiências: mais do que comunicar um significado fixo, ele/ela pode projetar condições para que cada mente vivencie um significado próprio.
  • Para educadores e mediadores culturais: As descobertas enfatizam o potencial da arte como ferramenta cognitiva e pedagógica. Em salas de aula ou museus, propor atividades com arte abstrata pode estimular os alunos a exercitarem a criatividade, pensamento crítico e conexão pessoal com o conteúdo. Por exemplo, pedir que estudantes interpretem um quadro abstrato relacionado a um tema curricular (digamos, as emoções em literatura, ou conceitos de ciência) pode gerar engajamento profundo – cada aluno trará suas referências e, ao compartilhar, aprenderá com as perspectivas dos colegas. Isso aproveita o fenômeno apontado pelos cientistas: a apreciação estética motivada por prazer e curiosidade facilita a aquisição de conhecimento. Além disso, os educadores podem usar a arte figurativa para introduzir narrativas históricas ou científicas, sabendo que ela fornece um ponto comum, mas complementar com a arte abstrata para aprofundar a reflexão individual. Em museus, mediadores culturais podem encorajar os visitantes a formular suas próprias histórias sobre obras abstratas, validando essas interpretações pessoais como parte valiosa da experiência – afinal, a neurociência confirma que não existe resposta “certa” única diante do abstrato, mas sim um mosaico de respostas legítimas.
  • Para terapeutas e profissionais de saúde mental: Os achados reforçam práticas já utilizadas na arteterapia e oferecem novas possibilidades. Como vimos, a arte (especialmente a abstrata) pode funcionar como um catalisador de processamento emocional. Em contextos terapêuticos, pinturas e desenhos abstratos permitem que pacientes projetem sentimentos difíceis de verbalizar, dando forma visual a angústias, traumas ou desejos de maneira menos direta e potencialmente menos dolorosa. A evidência de que essa experiência envolve redes de memória e self sugere que contemplar (ou criar) arte abstrata pode ajudar a acessar memórias recalcadas ou significados pessoais profundos de forma protegida – a pessoa sente que está falando dos “manchas e cores”, mas na verdade está falando de si. Além disso, o comprovado efeito de redução de estresse pela contemplação artística sustenta iniciativas de inserir arte em ambientes hospitalares, salas de espera e espaços urbanos como forma de promoção de saúde mental coletiva. Para pacientes com TEPT ou ansiedade, por exemplo, algumas sessões focadas em obras abstratas podem ser usadas para praticar mindfulness estético: observar a obra, notar sensações e pensamentos que emergem, trabalhá-los com o terapeuta – transformando a tela num espelho onde, pouco a pouco, a pessoa reconhece e reintegra partes de si, mas também encontra alívio e calma no simples apreciar das formas. Em suma, compreender a distinta resposta cerebral à arte abstrata dá aos terapeutas uma base científica para algo que já intuíamos: a abstração plástica abre um espaço de segurança psíquica, um playground mental onde o inconsciente pode se expressar através de símbolos e metáforas visuais, conduzindo a insight e cura.

Reflexões e conexões teóricas-poéticas

As investigações neurocientíficas sobre arte dialogam naturalmente com ideias da arte, da filosofia e até da mitologia. Podemos tecer algumas conexões especulativas – integrando linguagem teórica e poética – entre as descobertas atuais e conceitos mais amplos:

  • A “linha orgânica” de Lygia Clark: A artista brasileira Lygia Clark, em meados do século XX, propôs o conceito de linha orgânica – não uma linha desenhada no quadro, mas o espaço entre a obra e o espectador, uma fronteira viva e imprecisa que conecta ambos. Clark via a moldura e o entorno como parte do trabalho, uma fresta por onde o observador penetra a obra e vice-versa. Essa ideia ressoa notavelmente com o que a neurociência agora observa na arte abstrata: o cérebro do observador completa ativamente a obra, habitando essa zona fronteiriça entre o que está na tela e o que está na mente. Poderíamos dizer que a “linha orgânica” acontece dentro do cérebro, nas sinapses onde memórias e emoções pessoais tocam as formas visuais vindas de fora. Cada interpretação subjetiva seria como uma incisão no “corpo” da pintura, abrindo-a para o organismo vivo das experiências internas. Assim, a linha orgânica de Clark antecipa a parte do observador: a obra de arte não termina na tinta sobre a tela, mas prolonga-se nas redes neurais do público. Para artistas neo-concretos como Clark, isso tinha um sentido libertador – a arte torna-se experiência compartilhada, quase um ato coletivo entre obra e plateia. Hoje vemos que até no nível biológico isso faz sentido: arte e cérebro se entrelaçam, co-criando a realidade estética.
  • Zonas de prazer vegetal (luxúria não-humana): O usuário menciona a ideia de “zonas de prazer vegetal”, evocando uma luxúria não-humana – uma espécie de deleite primordial, talvez ancorado em nossa conexão com a natureza. Essa expressão poética pode ser relacionada a descobertas de que certos padrões visuais, especialmente os padrões orgânicos e fractais tão comuns nas plantas, exercem efeito peculiar sobre nossa mente. Pesquisas em psicologia ambiental e neurociência mostraram que padrões fractais (estruturas geométricas que se repetem em diferentes escalas, como as ramificações de galhos ou os desenhos de folhas) tendem a ser intrinsecamente prazerosos e relaxantes para o cérebro humano. O físico e artista Richard Taylor observou que nosso sistema visual parece “programado para compreender fractais”, e que existe uma espécie de ressonância fisiológica quando olhamos esses padrões, levando a redução do estresse e sensação de bem-estar. Não por acaso, muitos artistas abstratos (como Jackson Pollock com suas drip paintings) incorporaram espontaneamente texturas fractais em suas obras, e especula-se que isso contribua para o impacto quase hipnótico de certos quadros. Poderíamos dizer então que a arte abstrata, ao empregar formas análogas às da natureza – curvas fluidas, ramificações, simetrias radiais –, cria “jardins visuais” onde nosso cérebro colhe um prazer ancestral, vegetal. Essa “luxúria não-humana” seria o deleite sentido não pelo nosso intelecto racional, mas por camadas mais primitivas da nossa percepção, afinadas durante milhões de anos de evolução em meio a florestas, rios e céus estrelados. Quando um quadro abstrato nos fascina de modo quase visceral, talvez ele esteja tocando essas zonas profundas: os olhos percebem eco de folhas e chamas, o coração se aquieta. Em termos de neurociência, além da ativação do circuito cognitivo (DMN e afins), a apreciação de certos traços abstratos pode recrutar sistemas límbicos de recompensa – liberação de dopamina ligada à satisfação estética – ou reduzir a excitação da amígdala (estrutura associada ao medo e estresse), produzindo calma. Essa dimensão orgânica-prazerosa da experiência abstrata acrescenta um viés biológico: contemplar padrões abstratos agradáveis talvez seja um refúgio que reconecta o cérebro ao útero da natureza, por assim dizer, induzindo relaxamento e prazer não-sexual, porém profundamente sensual, quase botânico em sua quietude.
  • A “linguagem da serpente” – fractais e símbolos primordiais: A serpente, desde tempos imemoriais, carrega simbologias poderosas – conhecimento proibido, ciclo de vida e morte (a cobra que troca de pele), a tentação edênica, a sabedoria xamânica. Falar em “linguagem da serpente” como um fractal perceptivo sugere uma comunicação que não se dá por palavras, mas por imagens repetitivas e hipnóticas, tal qual as escamas de uma serpente ou seu movimento espiralado. Em muitas culturas, visões de serpentes aparecem em estados alterados de consciência, sonhos ou rituais, frequentemente associadas a padrões geométricos complexos. Alguns estudiosos de arte e consciência acreditam que há formas arquetípicas – espirais, labirintos, redes – que são compreendidas instintivamente pelo nosso cérebro, quase como se houvesse um “idioma visual” universal gravado em nosso inconsciente. Padrões fractais, presentes na natureza e facilmente vistos em alucinações ou nas artes decorativas tradicionais, fariam parte desse vocabulário primordial. A serpente, com seu corpo alongado e repetitivo, serpenteando pelo campo visual, encarna esse princípio. Quando olhamos certas obras abstratas que apresentam repetições rítmicas, linhas ondulantes ou formas concêntricas, é como se essa linguagem não verbal sussurrasse ao nosso cérebro. Neurocientificamente, padrões repetitivos ativam neurônios em sequência e podem induzir estados de fluxo mental ou mesmo transe leve, sincronizando ritmos cerebrais (ondas cerebrais) de maneira incomum. A “linguagem da serpente” poderia metaforicamente representar o diálogo direto com nosso cérebro reptiliano – as partes mais antigas do cérebro, relacionadas à percepção sensorial bruta e instintos. Assim, uma pintura abstrata muito rítmica ou intricada poderia falar simultaneamente ao nosso intelecto (que tenta decifrar a ordem do padrão) e ao nosso instinto (que simplesmente responde à harmonia ou estranheza da forma). Diferente da língua escrita ou falada, essa linguagem serpentina não narra eventos, mas pode transmitir sensações e insights não-lineares – um entendimento que emerge em camadas, como um fractal revelando mais detalhes conforme se observa. Em suma, reconhecer uma “linguagem da serpente” na arte abstrata é reconhecer que há comunicação sem conceito, um conhecimento estético que se dá por símbolo e ritmo, conectando-nos a esferas de significado pré-verbais.
  • Narrativa e construção da realidade (Lacan, Harari, Krenak): A necessidade de construir narrativas é uma característica essencialmente humana. O psicanalista Jacques Lacan argumentava que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”, ou seja, nossa psique se forma narrativamente, tecendo símbolos e significantes. Yuval Noah Harari, por sua vez, destaca que a capacidade de acreditar em ficções coletivas – mitos, histórias, artes – permitiu a cooperação em larga escala e a criação das realidades culturais que nos cercam. Já o pensador indígena Ailton Krenak nos lembra da multiplicidade de narrativas: enquanto a sociedade ocidental impõe uma história linear de progresso, os povos originários vivem outras histórias, mitologias nas quais humanos, animais, plantas e espíritos coabitam uma realidade plural. Como isso se conecta à arte abstrata e ao cérebro? De várias formas. Primeiro, o estudo neurocientífico reforça que, diante de algo ambíguo, nosso cérebro tenta construir uma narrativa – ainda que mínima – para dar sentido à experiência. Mesmo quando contemplamos uma pintura sem figura alguma, frequentemente emergem pequenas histórias internas: “essas formas lembram um amanhecer depois da tempestade” ou “vejo duas almas se encontrando”. Estamos aplicando a mesma função que usamos para dar sentido à vida: criamos narrativas, mesclando percepções com imaginação. Essa é a parte do observador em ação – cada um conta uma história diferente ao olhar a mesma imagem, projetando sua subjetividade. Lacan diria que estamos jogando nossos significantes internos sobre o quadro em branco (ou multicolorido), numa tentativa de amarrar o que vemos a algo que faça sentido em nossa linguagem psíquica. Harari talvez apontasse que essa capacidade de ver histórias mesmo onde não há nenhuma explícita é o que nos fez dominar o mundo: vemos leões nas nuvens, constelações no caos estelar, deuses nas florestas. A arte abstrata é, nesse sentido, um convite à fabulação, um espelho do poder fabulador que nos define. Já Krenak poderia nos convidar a considerar quais narrativas estamos criando: quando diante do abstrato cada pessoa tem sua visão, isso nos lembra que a realidade pode ser contada de múltiplas maneiras – nenhuma “mais verdadeira” que a outra. Assim como diferentes culturas têm cosmologias diversas, dois indivíduos têm sonhos distintos para a mesma mancha de tinta. Valorizar essa diversidade narrativa – seja na arte, seja na sociedade – é fundamental para construirmos um mundo mais inclusivo e imaginativo. A arte abstrata, com sua abertura, simboliza a liberdade do imaginário: ela não impõe um enredo, permite o florescer de muitos. Isso tem ecos na ideia de Krenak de que precisamos “reencantar o mundo” com outras histórias, especialmente frente às crises atuais – talvez a arte abstrata nos treine para isso, para ver além do óbvio e sentir que as coisas podem ter significados insuspeitos.

Conclusão

As investigações sobre o cérebro e a arte abstrata revelam, em última análise, a beleza de nossa experiência subjetiva. Diferentes pessoas podem olhar para a mesma pintura e, neurologicamente, percorrer caminhos distintos – e ainda assim nenhum deles está errado. A ciência demonstra que, enquanto a arte figurativa nos une em torno de uma visão compartilhada do mundo, a arte abstrata nos convida a uma jornada interior e singular, alimentada por nossas memórias, emoções e desejos. Essa dança entre olho, cérebro e arte confirma a máxima de que “a arte está nos olhos (e mente) de quem vê”.

Por outro lado, a própria neurociência, ao estudar a arte, expande seus métodos para além do puramente quantitativo, abrindo-se a fenômenos subjetivos complexos. Arte e ciência, como já refletiu Eric Kandel, são formas complementares de entender o mundo: a arte nos dá experiências que frequentemente fogem à linguagem e nos transformam por dentro, enquanto a ciência fornece conceitos e evidências que nos ajudam a refletir e contextualizar essas experiências. Juntas, elas enriquecem nossa compreensão da realidade. Saber que um quadro abstrato ativa redes de memória e imaginação não torna a obra menos misteriosa – ao contrário, vemos quão profundamente ela penetra em nós. E quando relacionamos isso a ideias de artistas visionários como Lygia Clark, ou às metáforas de serpentes e fractais, ou às teorias de grandes pensadores sobre narrativas, percebemos um fio condutor: a realidade que vivemos é co-criada pela interação entre nossos cérebros e o mundo ao redor, seja uma floresta, uma cidade ou uma pintura numa galeria.

Da próxima vez que você se encontrar diante de uma tela abstrata, permita-se demorar. Observe as formas sem nome, note as emoções que brotam, as lembranças que afloram. Seu cérebro estará tecendo histórias nas redes da imaginação – fazendo poesia sináptica a partir de manchas de cor. Nesse momento, arte e mente se fundem em um diálogo silencioso. Como um jardineiro de estrelas polinizando ideias, você, o observador, completa a obra com sua presença. E ao fazê-lo, quem sabe, participa também de algo maior: o incessante ato humano de dar sentido ao mundo, pincelada a pincelada, narrativa a narrativa, sonho a sonho.

Referências: Durkin, C. et al. The Beholder’s Share: Bridging art and neuroscience to study individual differences in subjective experience. PNAS (2025); Reportagem Deutsche Welle/Metrópoles (2025); Clow, A. & Fredhoi, C. Normalisation of salivary cortisol levels by a brief visit to an art gallery. J. Holist. Health (2006); Taylor, R. et al. sobre padrões fractais e estética; Lygia Clark, Descoberta da Linha Orgânica (1954); Lacan, J. (1953), Harari, Y. (2014), Krenak, A. (2019) – reflexões sobre linguagem, ficção e cosmologia indígena.

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